Cada um vê o que quer em Frantz Fanon.

O ícone anticolonial é incansavelmente citado por esquerdistas que tuí­tam sobre o movimento Vidas Negras Importam ou sobre a Palestina. Ele é o pai dos esforços constantes para “descolonizar a psiquiatria”. Foi até evocado pelo teórico da conspiração de extrema-direita Renaud Camus como suporte a seus apelos para despovoar a Europa dos “ocupantes” não brancos.

Desde 2023, o psiquiatra nascido na Martinica, combatente na revolução da Argélia, parece mais popular que nunca. Depois que militantes do Hamas irromperam de Gaza e mataram 1,2 mil israelenses, Fanon tem sido citado, dissecado e discutido em postagens nas redes sociais, num esforço para explicar o massacre e o posterior bombardeio de Israel ao território sitiado, que matou mais de 30 mil palestinos.

Uma série de declarações e artigos de opinião tentaram entender como as teorias controversas de Fanon sobre violência e descolonização se aplicam aos ataques do Hamas.

Estudantes da Universidade de ­Columbia, nos Estados Unidos, citaram Fanon em um manifesto intitulado Opressão Gera Resistência: “Quando nos revoltamos, não é por uma cultura em particular. Nos revoltamos porque, por muitas razões, não conseguimos mais respirar”.

Para Adam Shatz, ao mesmo tempo que foi celebrado, Fanon foi mal compreendido. Shatz é o autor do magistral A Clínica Rebelde: Uma Biografia de Frantz Fanon, recém-lançado no Brasil. No livro, ele busca dissipar algumas das mitologias em torno desse “tribuno dos oprimidos”.

A Clínica Rebelde: Uma Biografia de Frantz Fanon. Adam Shatz. Tradução: Érika Nogueira Vieira. Todavia (576 págs., 109,90 reais) – Compre na Amazon

“Fanon continua sendo uma figura icônica”, diz Shatz, “e isso significa que há todos os tipos de ideias diferentes que o cercam. É necessário um corte para compreendê-lo com alguma clareza.” Para Shatz, jornalista, ensaísta e editor da London Review of Books, são as contradições nos textos políticos e na história de vida de Fanon que o tornam uma figura tão atraente, mais de 60 anos após sua morte.

Talvez nenhuma contradição seja mais clara do que aquela entre a “prática como curandeiro”, segundo Shatz, “e sua prática como um lutador ou alguém que defende a violência como uma espécie de terapia para os oprimidos”.

Os fundamentos da trajetória de ­Fanon, nascido numa família de classe média das Índias Ocidentais na Martinica colonial e tornado militante no movimento de independência da Argélia, são conhecidos pela maioria das pessoas com informação sobre as lutas anticoloniais de meados do século XX.

Nascido em 1925, ele cresceu como um patriota francês que lutou contra os nazistas pelas forças da França Livre de Charles de Gaulle, no Norte da África e na Europa, antes de se estabelecer na França para estudar Psiquiatria.

Em Pele Negra, Máscaras Brancas (Editora Ubu), de 1952, ele descreve o momento em que começou a perceber o que significava ser um homem negro num país onde predominavam as atitudes coloniais. Em uma viagem de trem em Lyon, ele nota que um garoto francês branco se assusta com sua presença, e alerta a mãe sobre o nègre no vagão.

“Fanon escreve, ao tratar dessa experiência primal, que nunca havia realmente pensado em si mesmo como um negro. Ele pensava que era um francês de cor”, diz Shatz. “Achava que tinha mais em comum com os franceses

Gosto pela ambivalência. Adam Shatz, jornalista, passou a maior parte da carreira contando histórias de pensadores e artistas rebeldes – Imagem: Sarah Shatz

do que com o passado ancestral africano. Ele descobre aí ser um nègre, associado a coisas como canibalismo, perigo e violência.”

Esse texto seminal ressoou em Shatz. Nascido e criado em um lar liberal de esquerda em Massachusetts, Shatz é um francófilo que um dia alimentou o sonho de ser um chef pasteleiro. Quando tinha 10 anos, um grupo de amigos o chamou de “judeu sujo” e atirou moedas a seus pés. Shatz ficou congelado até os meninos irem embora. Mais tarde, atacou um deles.

Não foi apenas na experiência de ­Fanon no trem que Shatz se reconheceu, mas no que ele fez dela: “Sua reação foi se afirmar por meio da violência, que é exatamente o que eu fiz”.

Ao começar a escrever sobre os efeitos psicológicos do racismo, particularmente em pessoas negras vivendo sob o colonialismo francês, Fanon experimentou sentimentos de inferioridade e ódio em relação a si mesmo.

Quando viajou para continuar seu trabalho de psiquiatra na Argélia francesa e viu eclodir a revolução, em 1954, juntou-se à luta da Frente de Libertação Nacional contra o país pelo qual havia lutado uma década antes. Ele transformou o hospital que administrava em um esconderijo para combatentes antifranceses e um centro de tratamento para a Argélia colonial. Em 1957, foi exilado, pelo governo francês, na Tunísia.

Ver a brutalidade do colonialismo na Argélia convenceu Fanon de que a emancipação necessariamente teria um alto preço: a violência contra o poder colonial era não só inevitável, mas necessária para que os povos oprimidos afirmassem sua humanidade e exigissem sua libertação.

É por meio da violência, escreve em Os Condenados da Terra (Editora Zahar), de 1961, que o nativo “descobre que sua vida, sua respiração, seu coração pulsante são os mesmos do colono. Ele descobre que a pele do colono não tem mais valor do que a pele de um nativo; e deve-se dizer que essa descoberta abala o mundo de uma maneira muito necessária”.

Embora Fanon visse a violência como um requisito para romper as correntes psicológicas do colonialismo, ele acreditava que uma revolta dos povos nativos seria o primeiro passo num processo transformador que levaria a uma sociedade pós-colonial baseada em ideias universalistas de liberdade e igualdade para todos.

“Apesar da desolação de alguns de seus escritos, Fanon continua sendo um otimista desafiador”, diz Shatz. “Ele acredita na ideia não apenas de superar o colonialismo, mas na própria possibilidade de criar o que chama de ‘um novo homem’. Se o mundo em que vivemos foi feito por seres humanos, ele pode ser desfeito por eles.”

“Apesar da desolação de alguns de seus escritos, Fanon continua sendo um otimista desafiador”, afirma o biógrafo

Os Condenados da Terra, publicado enquanto Fanon estava morrendo de leucemia num hospital nos Estados Unidos, o transformaria em um herói entre os revolucionários de esquerda e do mundo em desenvolvimento. Ele não chegou a ver a Argélia livre. Morreu três meses antes de sua libertação.

O interesse de Shatz por Fanon não surpreende quem acompanha seu trabalho. O autor passou a maior parte da carreira contando histórias ambivalentes de pensadores e artistas rebeldes como Edward Said, Nina Simone, Michel Houellebecq e Sonic Youth. “Nunca pensei em descrever Fanon como alguém sem contradições. Fanon era alguém que às vezes discordava de si mesmo”, diz.

Shatz argumenta que Os Condenados da Terra é o livro menos compreendido de seu biografado. Embora seja frequentemente lido como um deleite diante da violência contra exércitos coloniais e colonos, o texto também revela as cicatrizes psicológicas carregadas por combatentes anticoloniais assombrados pela violência praticada.

O sonho de Fanon, de que uma guerra anticolonial levaria a uma nova Argélia multicultural, foi frustrado por um movimento que se tornava cada vez mais islâmico. Para Shatz, ao descrever um “mundo cortado em dois” – de um lado o Sul Global e, de outro, o Norte Global – Fanon foi presciente.

“Fanon”, diz, “era alguém que entendia a maneira como a ordem pós-colonial reproduziria, num cenário global, alguns dos conflitos do próprio colonialismo.” •


Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1347 de CartaCapital, em 05 de fevereiro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O tribuno dos oprimidos’

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Last Update: 30/01/2025