Uberização da advocacia: o avanço das plataformas digitais no mundo do trabalho

por Matheus Silveira de Souza

Quando falamos de uberização do trabalho, as primeiras imagens que aparecem em nossa mente são entregadores do Ifood ou motoristas da Uber, ambos trabalhando mais de 12 horas por dia, submetidos ao controle algorítmico e sem acesso aos direitos trabalhistas. Embora esses trabalhadores sejam os mais presentes em nosso cotidiano e provavelmente os mais numerosos, o fenômeno da plataformização é muito mais amplo e está alcançando cada vez mais profissões.

Diferentes pesquisas demonstram que empregos como advogados[1], arquitetos, psicólogos[2], tradutoras[3], empregadas domésticas, jornalistas e trabalhadoras do sexo[4] estão progressivamente subordinando-se à lógica das plataformas digitais, fenômeno conhecido na literatura como espraiamento da plataformização do trabalho[5].

A plataformização é uma nova forma de controle, gestão e gerenciamento do trabalho, capaz de transferir os riscos e custos aos trabalhadores e criar oligopólios em setores da economia[6]. Sendo assim, por que as empresas-plataformas se limitariam a extrair valor apenas de atividades relacionadas ao transporte de pessoas, delivery e treinamento de IA e não tentariam impor a plataformização para outros setores da economia? Como disse Paulo Galo, liderança dos entregadores, em uma entrevista à Folha de S. Paulo: “Se você acha que a uberização é um problema dos entregadores, você tá errado. A uberização é um desdobramento da revolução industrial. Se a revolução industrial chegou pra todo mundo, a uberização vai avançar pra todo mundo também. Se já não chegou, ela vai chegar(…)[7].

ADVOGADOS AUDIENCISTAS, PLATAFORMAS DIGITAIS E LEILÃO INVERSO

Podemos encontrar, atualmente, mais de 15 plataformas digitais de serviços jurídicos que realizam a intermediação entre escritórios e advogados, tais como Jurídico Certo, Migalhas Correspondentes, Doc9, Juris Correspondente, entre outras. Embora essa profusão de plataformas possa parecer uma maneira de criar oportunidades profissionais, o que as pesquisas demonstram, a partir de entrevistas com advogados e advogadas que atuam na área, é que a plataformização da advocacia representou uma precarização ainda mais intensa dos serviços jurídicos. As plataformas realizam a mediação entre escritórios que precisam contratar serviços jurídicos, como realização de audiências, e os advogados disponíveis a prestar esses serviços. Essa mediação, entretanto, impõe ritmos de trabalho, distintas formas de controle laboral e se apropria de uma parte das remunerações dos advogados. A realização de audiências ocupa a maior parte dos serviços contratados via plataformas.

Os advogados entrevistados relatam ganhar uma média de 50 a 70 reais por audiência. Além dos baixos valores, há uma série de trabalhos não pagos realizados por esses indivíduos. Como as audiências são majoritariamente presenciais, os advogados precisam se deslocar até o fórum e não são pagos pelo tempo de deslocamento. Ademais, muitos entrevistados indicaram que é comum as audiências atrasarem e que o tempo de atraso também não é remunerado. Uma entrevistada afirmou ter participado de uma audiência que atrasou mais de 1 hora para iniciar e, ao fim, ganhou 60 reais pela diligência. A plataforma Doc9, por exemplo, obriga o advogado a realizar um check-in no fórum 40 minutos antes do início da audiência e, para tanto, deve dar acesso à sua localização pelo celular. Os trabalhadores ainda podem receber multas pela Doc9 caso não compareçam à diligência ou não avisem com alguma antecedência.

Os baixos valores não são um simples resultado da oferta e demanda, mas são, também, um efeito do leilão inverso imposto pela arquitetura digital de algumas dessas plataformas. Se no leilão comum, quem paga mais tem mais chances de levar o produto, no leilão inverso, quem cobra menos aumenta a chance de ser contratado. Vamos esmiuçar essa questão. Na plataforma Jurídico Certo, por exemplo, um escritório anuncia que precisa de um advogado para realizar uma audiência trabalhista em determinada data. Dezenas de advogados podem ofertar um valor para a realização dessa audiência.

Como não há um limite sobre a quantidade de advogados que encaminham uma proposta para a mesma audiência, impõem-se, pelo próprio desenho da plataforma, a lógica de leilão inverso. Outras empresas-plataformas, como a GetNinjas, ao definir um limite de três profissionais que podem entrar em contato com cada cliente, diminui a intensidade do próprio leilão. Assim, a plataforma digital não é apenas uma intermediária de serviços, mas a responsável por estruturar o contorno dessas relações.

Além das baixas remunerações, há diferentes maneiras utilizadas pelas plataformas para extrair valor do trabalho dos advogados e advogadas. A Jurídico Certo, por exemplo, cobra uma taxa de 9% a 15% de cada diligência na hipótese de o pagamento ocorrer pela própria plataforma. Ademais, os advogados só conseguem entrar em contato com os escritórios que ofertam as audiências caso paguem a versão premium da Jurídico Certo, que custa 49 reais por mês. Ademais, há uma financeirização do trabalho dos advogados e advogadas, pois as remunerações só são transferidas pela Jurídico Certo em até 30 dias após a conclusão das audiências, permitindo que a plataforma receba juros decorrente desses rendimentos.[8]

A precarização da advocacia não começa com a plataformização, mas já estava em curso há mais de uma década. A pejotização de advogados, a contratação como associados e os escritórios de advocacia em massa são velhas formas de precariedade. Todavia, a plataformização atualiza essa dinâmica, impondo características próprias do trabalho plataformizado[9] à advocacia, tais como: I) consolidação do trabalho sob demanda[10]; II) leilão inverso; III) controle algorítmico; IV) obtenção de lucro a partir da extração de dados de advogados e clientes; V) financeirização.

Entretanto, se a plataformização é capaz de reorganizar o mundo do trabalho, ela também seria capaz de reorganizar a estrutura de classes da sociedade? Em outras palavras, qual é a classe social dos/as advogados e advogadas plataformizados/as?

A PLATAFORMIZAÇÃO CHEGOU NA ALTA CLASSE MÉDIA?

Embora a figura de um advogado, no imaginário social, nos remeta a um indivíduo de classe média, esse não é o perfil dos advogados e advogadas atingidos pela plataformização. A maior parte dos nossos entrevistados teve que conciliar estudo e trabalho, cursou a graduação no período noturno em faculdades privadas e é o primeiro da família a acessar o ensino superior. Uma parte considerável desses indivíduos trabalhou, durante a graduação, como operador de telemarketing, vendedor no comércio e auxiliar administrativo. Em síntese, a plataformização não atingiu a advocacia como um todo, mas uma parte específica da advocacia, com classe social muito bem definida. Obviamente, os abismos estruturais da sociedade brasileira, construídos com base em marcadores de raça e gênero, aprofundam ainda mais essas desigualdades.

Em um país da periferia do capitalismo como o Brasil, em que quase metade da população mantêm-se na informalidade e às margens da proteção social, a precarização não é uma novidade. Entretanto, talvez haja alguma novidade no fato de que trabalhadores que buscam o diploma universitário como estratégia de ascensão social, ao concluírem a graduação, encontram trabalhos tão precários quanto o que estavam antes de se formarem.

Não é raro observarmos pessoas com diploma universitário que, por não encontrarem emprego em sua área de formação, atuam como motoristas de aplicativos. Neste texto, visualizamos advogados e advogadas que, mesmo ao atuarem na área que concluíram a graduação, encontram disponíveis atividades precarizadas e plataformizadas.  Em síntese, uma parcela dos advogados e advogadas parece ter dois caminhos disponíveis neste mar de precariedade: atuar como motorista da Uber ou exercer uma advocacia uberizada.

É como se a sociedade falasse para esses indivíduos: você pode até acessar o ensino superior e obter um diploma universitário, mas não se engane, o trabalho precário continuará como uma constante na sua vida. O neoliberalismo engrossa esse caldo, tentando convencer os trabalhadores de que eles são os culpados por estarem em empregos precários.

Enxergar a plataformização como um fenômeno amplo, capaz de atingir diferentes profissões, evidencia que o debate sobre a regulação do trabalho plataformizado não é uma disputa que afetará apenas entregadores e motoristas de aplicativo, mas que terá impactos amplos no mundo do trabalho. Ao mesmo tempo, olhar a trajetória social de jovens que passam 5 anos conciliando estudo e trabalho para, ao fim, encontrarem empregos precários e plataformizados, demonstra quais são os caminhos de acesso à universidade e ao mercado de trabalho disponíveis para uma parte da população. Essa equação social que une esforço, precariedade e frustração cria um terreno fértil para o crescimento da extrema direita e de discursos autoritários, afinal de contas, a direita não ganha terreno apenas com base em fake news, mas aproveitando da própria condição material vivenciada por milhões de brasileiros.

Matheus Silveira de Souza é doutorando em Sociologia pela Unicamp e mestre em Direito pela USP.


[1] SOUZA, Matheus Silveira de. Classes médias e uberização: a precarização do trabalho de advogados em plataformas digitais.Campinas: Anais da Anpocs, 2023.

[2] BRAZ, Matheus. Viana., BIAZZI, Amanda. T., CUFFA, C., MENDES, T. C., SANTOS, V. M., FERREIRA, Y. A. Plataformização do trabalho na Psicologia Clínica: atendimentos online, tecnoestresse e produção de conteúdos em mídias sociais. Relatório de Pesquisa LATRAPS Research Lab, 2024

[3] FILGUEIRAS, Vitor; CAVALCANTE, Sávio. Um novo adeus à classe trabalhadora? In: ANTUNES, R. (Org.). Uberização, Trabalho Digital e Indústria 4.0. São Paulo: Boitempo. 2020.

[4]  OUTRAS PALAVRAS. Fatal Model: a extorsão do trabalho sexual uberizado. Disponível em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/fatal-model-a-extorsao-do-trabalho-sexual-uberizado/

[5] CARDOSO, Ana Claudia M; GARCIA, Lucia. O espraiamento das plataformas de trabalho. Revista Ciências do Trabalho, n.21: Plataformas Digitais II, 2022.

[6] ABÍLIO, Ludmila C. Uberização: a era do trabalhador just-in-time? Revista Estudos Avançados – IEA – USP, v.34, n. 98, p.111-126, 2020.

[7] Folha de São Paulo, 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ttciccleoIg&t=72s

[8] SOUZA, Matheus Silveira de. Classes médias e uberização: a precarização do trabalho de advogados em plataformas digitais.Campinas: Anais da Anpocs, 2023.

[9] BRIDI, Maria. A. da C.; VÉRAS DE OLIVEIRA, Roberto. de; SALAS, M. M. Plataformas de entrega de mercadorias na América Latina: estado da arte. Revista Brasileira de Sociologia – RBS, [S. l.], v. 11, n. 29, p. 14–40, 2024.

[10] ABÍLIO, Ludmila C. Uberização: a era do trabalhador just-in-time? Revista Estudos Avançados – IEA – USP, v.34, n. 98, p.111-126, 2020.

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Last Update: 30/01/2025