Há mais de duas semanas, cerca de 300 indígenas, de 22 etnias diferentes, ocupam a sede da Secretaria de Estado de Educação (Seduc) do Pará, no distrito de Icoaraci, em Belém.
O movimento, que começou no dia 14 de janeiro, é uma reação à lei estadual 10.820/2024, aprovada em dezembro e sancionada pelo governador Helder Barbalho (MDB). Os indígenas alertam que a nova legislação ameaça programas de ensino voltados às comunidades rurais, ribeirinhas, quilombolas e indígenas, pondo em risco o acesso à educação em áreas remotas.
A polêmica envolve o Sistema de Organização Modular de Ensino (Some), criado para levar educação presencial a regiões de difícil acesso no Pará, como áreas rurais, ribeirinhas, quilombolas e indígenas. Uma vertente específica, o Sistema Modular de Ensino Indígena (Somei), adapta esse modelo à realidade sociocultural dos povos originários, garantindo a oferta de aulas presenciais e materiais didáticos que respeitam os saberes locais, as línguas nativas e as tradições de cada etnia.
Atualmente, muitas comunidades dependem do Some e do Somei para ter acesso a professores que se deslocam periodicamente às aldeias ou residem perto delas, evitando que estudantes precisem viajar até áreas urbanas. Sem esses sistemas, o acesso à educação fica seriamente comprometido.
O que diz a nova lei?
A lei, em linhas gerais, estabelece regras sobre o estatuto do magistério público no Pará. O ponto de controvérsia, segundo lideranças indígenas e sindicais, é que o texto:
- Não faz menção explícita ao Some ou ao Somei, indicando apenas que seriam regulamentados por norma futura do Poder Executivo. Para os manifestantes, isso abre uma brecha para a extinção gradativa desses programas.
- Facilita a expansão do ensino à distância em detrimento do ensino presencial. As comunidades temem que essa mudança signifique cada vez mais aulas gravadas, transmitidas por plataformas digitais — um modelo inviável em localidades sem acesso estável a energia elétrica e internet.
- Teria sido aprovada sem diálogo adequado. Lideranças indígenas afirmam que não foram consultadas, o que configuraria uma atitude autoritária e unilateral do governo estadual.
Também há o temor de que, ao priorizar o ensino mediado por tecnologias, a lei abra espaço para a substituição dos professores locais por um modelo “virtual” de educação, menos sensível às necessidades culturais e linguísticas de cada povo.
“O governo determinou às DRE’s a não oferta de matrícula no 1º ano, porta de entrada do ensino médio, no SOME, o que na prática significará a substituição dos professores por TVs no ensino médio como um todo em três anos”, denunciou o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras em Educação Pública do Estado do Pará, em nota publicada ainda em novembro do ano passado, antes da aprovação da lei.
A reação dos movimentos sociais
Em 22 de janeiro, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) protocolou uma ação direta de inconstitucionalidade contra a lei. A Apib argumenta que a legislação “revogou todo o arcabouço normativo referente à educação escolar indígena no estado” e “aboliu o regime presencial nas comunidades indígenas do Pará”. Uma decisão favorável do Supremo Tribunal Federal poderia, em último caso, invalidar parcial ou integralmente a lei.
Na segunda-feira 27, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Norte 2 registrou, em nota, “apoio incondicional” às comunidades indígenas que seguem mobilizadas, acrescentando que a lei estadual “representa uma ameaça significativa aos direitos e interesses dos povos indígenas do Brasil”, ressaltando, ainda, a perda de autonomia que a norma implica ao impor um modelo educacional padronizado que não respeita a diversidade cultural e linguística dos povos, comprometendo a autonomia na gestão educacional, fundamental para que as comunidades possam ensinar e preservar suas tradições, línguas e saberes.
O que esperar daqui para a frente?
Por ora, não há data oficial para o fim da ocupação. A ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, que compareceu à ocupação a pedido das lideranças, propôs nova reunião com Helder Barbalho para discutir ajustes ou uma saída negociada. O ministério reforçou a importância do ensino diferenciado e assegurou que atuaria para buscar soluções que resguardem os direitos das comunidades.
Indígenas e apoiadores reiteram que o caminho é revogar ou revisar a lei 10.820/2024, garantindo a preservação do SOME e do SOMEI, além de exigir a exoneração do secretário Rossieli Soares. Professores da rede estadual também deflagraram greve, pressionando ainda mais o governo.
Enquanto a ocupação continua, o governo tenta retomar as atividades na sede da Seduc. Segundo os manifestantes, houve episódios em que a polícia teria cortado água, energia e bloqueado o acesso de advogados e representantes do MPF ao prédio ocupado.
Em nota, o governo do Pará anunciou que um decreto manteria as aulas de forma presencial e que a Justiça Federal emitiu liminar para liberar a maior parte do prédio da Seduc para funcionamento administrativo. O governo diz que a ocupação interrompe serviços essenciais e enfatiza que não determinou a expulsão dos manifestantes, mas apenas a limitação do espaço ocupado.
Como o impasse pode afetar a COP–30?
Em novembro de 2025, Belém sediará a COP–30, uma das maiores conferências climáticas do mundo. Tanto sindicatos de trabalhadores em educação quanto organizações indígenas alegam que o governo do Pará, que busca se projetar como um defensor da Amazônia, está promovendo mudanças que prejudicam comunidades tradicionais.