Líder do ranking de mortes por Covid-19 na América Latina, com mais de 710 mil óbitos contabilizados, o Brasil poderia ter minimizado a tragédia se a desinformação científica massificada na internet, estimulada por Jair Bolsonaro e seus ministros, não houvesse induzido tantos cidadãos a ignorar as determinações de isolamento social, não se vacinar ou buscar remédios ineficazes contra o vírus. A pandemia arrefeceu, mas a nefasta combinação de negacionismo científico e militância de extrema-direita nas redes sociais continua a pleno vapor. Ciente da gravidade do problema, a comunidade científica nacional aposta na difusão de informações de qualidade como arma prioritária para enfrentar as fake news.
A Academia Brasileira de Ciências acaba de lançar no Rio de Janeiro o documento Desafios e Estratégias na Luta Contra a Desinformação Científica, no qual cientistas denunciam o “ecossistema lucrativo que inclui a monetização de conteúdo enganoso e a exploração de crenças e emoções do público para ganho financeiro” e propõem a regulamentação das plataformas que permitem, e muitas vezes impulsionam, a desinformação. Além de traçar um panorama dos principais fatores que influenciam no avanço e compartilhamento de informações falsas, o documento lista uma série de recomendações, entre elas a promoção da divulgação científica nacional, a ampliação do acesso dos estudantes a museus e institutos e o treinamento de cientistas em divulgação científica.
Outras medidas propostas são o fortalecimento da comunicação das universidades e demais instituições de pesquisa, a partir da criação de agências de notícias científicas especializadas, o investimento em educação científica com reforço do tema nos currículos educacionais, a criação de linhas de pesquisa específicas para o enfrentamento à desinformação e o desenvolvimento de um plano de apoio ao jornalismo científico. O objetivo da ABC é fazer com que o governo encampe as propostas. “Queremos nos aproximar da população e levar mais informação científica de qualidade à sociedade”, afirma a presidente da Academia, Helena Nader.
As sugestões foram elaboradas por um grupo de trabalho instituído no ano passado e integrado por 19 especialistas em divulgação científica e combate à desinformação. A ministra da Ciência, Tecnologia e Inovação, Luciana Santos, participou virtualmente do lançamento ao lado de Nader, do presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, Renato Janine Ribeiro, e do secretário-executivo do ministério, Luís Fernandes.
“A desinformação científica é um crime contra a vida e a democracia”, afirmou a ministra, antes de criticar a máquina de fake news em torno das vacinas, seus efeitos e a eficácia das redes bolsonaristas durante a pandemia. “Sabemos o quanto a desinformação foi e é nefasta para o Brasil. Precisamos fazer um enfrentamento à altura, para que as evidências científicas voltem a ser o normal, coisa que nunca deveriam ter deixado de ser.”
Coordenadora do processo de elaboração do documento, Thaiane Oliveira, professora de pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense, afirma que a desinformação é um fenômeno multifacetado. “Quando se trata de ciência, isso ganha outras camadas de complexidade. Vimos na pandemia várias desinformações sobre vacinas e hoje nos deparamos com o mesmo sobre meio ambiente e mudanças climáticas.”
Os cientistas alertam: com seu funcionamento por meio de algoritmos programados, as mídias sociais são hoje um espaço propício à disseminação de informações falsas relacionadas à ciência. Para reverter o quadro, o documento publicado pela ABC defende a necessidade de “mobilizar a comunidade acadêmica e científica para atuar como defensora da regulamentação das práticas de disseminação de informações em plataformas digitais” e propõe a adoção de “modelos que imponham responsabilidade às empresas pela circulação de desinformação científica”.
Vigora no Brasil, diz Oliveira, uma “economia da atenção”, segundo a qual a desinformação é um material altamente lucrativo para as grandes plataformas. A pesquisadora diz que existem duas formas de entender esse sistema: “A primeira está no próprio usuário produtor da desinformação, que utiliza a estrutura das plataformas digitais para lucrar e vender seus serviços e produtos, crença ou mesmo seu capital social. A outra diz respeito à forma como essas plataformas geram lucro em torno da visibilidade da desinformação”.
A ABC pede ainda a atenção da sociedade e do governo para os novos desafios e responsabilidades trazidos pelo avanço das tecnologias de Inteligência Artificial. O documento propõe o desenvolvimento de estratégias que evitem a disseminação indiscriminada de dados gerados por IA e a criação de ferramentas para identificação e marcação de conteúdos criados por máquinas. “Quem gera desinformação tem sempre um objetivo que não é o de fazer avançar a sociedade, mas de polarizar. Com o avanço da Inteligência Artificial, houve um grande aumento promovido por essa própria tecnologia”, diz Nader.
De acordo com a presidente da academia, por meio da educação, a ciência terá meios para controlar o avanço da desinformação no seio da sociedade. “Precisamos ensinar às crianças, da mais jovem idade até os mais velhos, a verificar as fontes de informação. E também a não compartilhar informação que não se saiba a origem.” No setor de ciência, tecnologia e inovação, essa atenção deve ser redobrada. “Sempre temos de perguntar: quem está falando? Qual é a fonte? Por que se está compartilhando? Quem fez a publicação? Isso vale para tudo. Toda a área da ciência.”
A pandemia, ressalta, acentuou as fake news com foco na ciência e a disseminação de mentiras passou a fazer parte de um projeto político. “A desinformação serve ao propósito de grupos. Isso temos de levar também em foco. A quem interessa e por quê? Esse uso ficou bem claro durante a pandemia, sobretudo no caso das vacinas, e também nas últimas eleições, com a difusão de mentiras sobre as urnas eletrônicas e outras tantas.”