Na cerimônia de formatura de novos agentes da Guarda Civil Metropolitana, no centro de São Paulo, o prefeito Ricardo Nunes encenou um espetáculo que diz muito sobre a retórica de repressão. Durante o evento, de forma meio desajeitada, ele aplaudiu e acompanhou o grito de guerra dos agentes, que incluía versos como “gás de pimenta na cara de vagabundo”. Não é um mero detalhe. É um sinal claro de como o poder público estimula a violência como resposta a questões estruturais.
Enquanto isso, na sombra do muro de concreto erguido na rua General Couto de Magalhães, vemos a verdadeira face da nossa sociedade: uma indiferença institucionalizada diante da vulnerabilidade. Sob a justificativa de “proteger” pedestres e moradores, a Prefeitura construiu ali uma barreira que, apesar de alegar não confinar pessoas, reproduz a lógica de exclusão. Afinal, esse tipo de solução “mágica” — um muro para “resolver” a Cracolândia — não é mais do que a continuação de operações antigas que deslocam usuários de drogas, sem jamais oferecer saídas reais. Fica a pergunta: a quem esse muro realmente serve?
A última vez que um homem branco achou excelente ideia cercar civis com muros e arames farpados foi em 1939. O mundo testemunhou o horror dos campos de concentração nazistas, onde vidas eram tratadas como lixo descartável. Isso terminou em 1945, com milhões de mortos e uma promessa de “nunca mais”. Pois bem, 2025 chegou e, no coração da maior cidade do Brasil, essa promessa parece ter ido para o mesmo lixo que recebe os direitos humanos.
O que mais choca, porém, é o silêncio cúmplice da sociedade diante dessas medidas. É como se aceitássemos, sem pestanejar, que se usem recursos públicos para erguer muros que segregam os mais pobres, enquanto investimentos em políticas verdadeiramente humanitárias continuam em banho-maria. Na mesma hora em que o país exige responsabilidade fiscal, gastamos fortunas com empreiteiras para isolar pessoas, mas fingimos não ter verbas para projetos de assistência social.
Nos últimos anos, o centro de São Paulo virou laboratório para políticas que tratam a Cracolândia como questão de segurança, e não de direitos humanos. A cada nova gestão, as operações ficam mais militarizadas, empurrando a população de rua para espaços cada vez mais invisíveis. E agora, a GCM aparece como a “solução” — armada até os dentes, entoando um discurso de “guerra” contra o outro.
O muro da Cracolândia é a versão atualizada desse pesadelo: uma área cercada, onde o Estado joga quem considera descartável — negros, pobres, dependentes químicos — sob o disfarce de “segurança pública”. A exaltação do prefeito sobre “gás de pimenta na cara dos vagabundos” revela como a própria GCM, que deveria proteger bens públicos e colaborar na segurança urbana, se converte em instrumento de exclusão social. Não se trata de investigação criminal ou policiamento ostensivo: o que vemos é um aval para a violência, transformando a Guarda em algo distante de seu propósito original e muito próximo de uma máquina de repressão.
E o gás, tão presente na imaginação da opressão, ressurge em outro contexto. Antes, era usado para sufocar judeus, ciganos e dissidentes em câmaras mortíferas. Hoje, sufoca moradores de rua, dependentes químicos e ambulantes, a céu aberto, sob aplausos de quem assiste de camarote. A hipocrisia evoluiu, mas a lógica é a mesma: rotular uma parte da população como “indesejável” e eliminá-la, seja pela força ou pela invisibilização.
Esse cenário ainda abre espaço para a especulação imobiliária. Campos Elíseos, centro da Cracolândia, vive na mira de projetos de “revitalização” que frequentemente expulsam moradores e pequenos comércios — enquanto construtoras e investidores aguardam para lucrar com a região. Segundo urbanistas, essas estratégias de gentrificação não resolvem problemas habitacionais ou sociais: apenas empurram os mais pobres para periferias ainda mais precárias.
A tragédia da Cracolândia se desenrola também na tentativa constante de invisibilizar a população em situação de rua. Das internações compulsórias — que boa parte da sociedade aplaude como “solução definitiva” — às remoções forçadas, o que se vê são paliativos que ignoram as raízes da pobreza, da falta de moradia e do uso problemático de drogas. Tudo para que essa realidade incômoda desapareça do nosso campo de visão.
O Judiciário, em tese, deveria zelar pelo cumprimento da Constituição e pelos direitos humanos, mas precisa reforçar, com urgência, que as ações do Executivo tenham como norte a dignidade humana. Sem essa fiscalização, corremos o risco de o próprio sistema legal endossar políticas de segregação como se fossem soluções rápidas.
Esse muro é mais um capítulo de uma triste história de exclusão. Porém, também serve como alerta para uma sociedade que aparentemente se contenta em aceitar “soluções” que só maquiam o problema. É hora de rasgar o véu da indiferença e perguntar: até quando vamos projetar cidades para excluir, em vez de acolher?
Ele, o muro, continua ali — testemunha de um poder público que opta por esconder o que não quer (ou não sabe) resolver. O gás de pimenta, por sua vez, tornou-se símbolo de uma sociedade que troca a compaixão pela barbárie. “Segurança” aqui é só palavra de ordem para legitimar um projeto de higienização social.
Não se enganem: isso não é progresso, não é civilidade. É só uma reprise de um filme horrível que já vimos antes. E, ao que tudo indica, São Paulo está preparada para pagar de novo o preço — com juros.