Crise de confiança e crise de governo, por Aldo Fornazieri
Que o governo Lula passa por uma crise, parece não haver dúvidas. O importante é dimensionar a natureza e a amplitude dessa crise para que possíveis soluções possam ser buscadas. A maioria dos analistas, quase a unanimidade, classifica a crise do governo como uma crise de confiança. Crise de confiança é também uma crise de credibilidade ou de confiabilidade.
A crise de confiança está implicada no fato de que setores importantes da sociedade, notadamente os agentes econômicos e os consumidores em geral, colocam em xeque a confiabilidade do que o governo faz e diz, principalmente em relação à economia. Isto eleva os níveis de desconfiança e de incerteza com efeitos danosos sobre vários aspectos da economia, que passam pelos investimentos e chegam a elevação de juros pagos pelo governo quando ele vai ao mercado captar recursos para financiar os seus gatos.
Por exemplo: embora haja uma inflação acima da meta, quando o governo paga juros reais do Tesouro IPCA + 8 significa que parcela desses juros se deve a uma crise de credibilidade. A sociedade não acredita na política econômica, na contenção da inflação e na redução do gasto público. Quanto mais aumentar a desconfiança sobre a capacidade do governo de conter o gasto público, mais juros altos ele vai pagar. Na esquerda existe uma crença de que é possível aumentar o endividamento público e reduzir a taxa de juros. Nas condições do Brasil, isto é uma ilusão.
A crise de credibilidade foi gerada pelo próprio governo. O presidente Lula e alguns líderes do PT deram voz a uma série de discursos inconsequentes, que minaram a confiança no próprio governo. Mesmo quando Galípolo e alguns diretores do BC indicados pelo atual governo votavam em favor da elevação da taxa de juros, Lula e esses líderes continuaram acusando o então presidente o BC de traidor do Brasil. Mas então, o que seriam Galípolo e esses diretores? É evidente que esse tipo de conduta mina a credibilidade no governo. Em determinado momento, parecia que Lula queria apostar contra o mercado. Esses dois erros foram estancados no final do ano, mas não sem produzir um grande estrado.
Na sequência vieram dois desastres. Primeiro, o desastre da definição e do anúncio do pacote fiscal. Pelo que se sabe até agora, Lula não deu aval à equipe econômica para que houvesse um ajuste mais duro. Sem deixar claro o que queria, desacreditou a própria equipe econômica. Com um governo sem comando interno, Lula submeteu o ajuste fiscal a vários ministros. Permitiu que Luiz Marinho e Carlos Lupi chantageassem a equipe econômica e o próprio governo ao ameaçarem pedir demissão se os seus ministérios fossem atingidos. Isso evidenciou não só a falta de rumo e de credibilidade do governo, mas a própria autoridade de Lula foi atingida. Deveriam ter sido demitidos na hora.
O anúncio do pacote fiscal com o aumento da isenção do IR se constituiu num dos maiores desastres de comunicação do governo. Ele só rivaliza com o desastre do Pix. Em resumo: a Receita adotou uma medida sem medir as possíveis consequências políticas negativas. Quando surgiram os primeiros vídeos dizendo que o governo poderia taxar o Pix e multar pequenos comerciantes, ou não houve monitoramento e, se houve, não se calculou o potencial negativo. Nicolas Ferreira nadou de braçada. O governo, encurralado, recuou. O recuo também foi desastroso: deixou os que defenderam o governo pendurados na brocha e passou a imagem de que havia algo errado e que, de fato, a taxação poderia vir. A medida foi revogada quando o prejuízo já estava precificado. O governo não soube se defender e capitulou. A deputada Érika Hilton, mesmo depois dos fatos consumados, mostrou a linha que o governo deveria ter adotado.
A crise de credibilidade foi criada pelo governo e amplificada pela oposição. Imaginar que a oposição bolsonarista não operaria os erros do governo é pura ingenuidade. Parece que no governo não age com a dimensão estratégica das ações e dos discursos. Em política não pode haver espaço para atos espontâneos. Os cálculos dos riscos e as consequências dos atos de fala e das ações, precisam sempre os preceder.
Se o governo não reverter rapidamente, com eficiência e com medidas criveis essa crise de confiança, caminhará em agonia rumo a 2026. O projeto político estará em risco e a possibilidade de retorno de um governo de direita será real. O problema da inflação mostra, mais uma vez, que o governo é passivo. Só age quando os problemas já contaminaram negativamente o ambiente.
As crises de credibilidade, se não estancadas, podem evoluir para crises governamentais. Essas crises dizem respeito ao funcionamento do governo. Em regra, elas começam por fatores internos e, depois, são alimentadas e potencializadas por fatores externos ao governo. Governos mais homogêneos e com sólida base de apoio são menos suscetíveis a essas crises. Governos heterogêneos e com apoio frágil, caso do governo Lula, são mais suscetíveis.
Quando a oposição percebe elementos de crise de credibilidade e sinais de crise governamental ela tende a levar a disputa para as ruas. Foi o que aconteceu com Dilma. Embora ainda improvável, não se deve descartar essa possibilidade de uma oposição de rua ao atual governo. O crescimento dos ataques da oposição e as mobilizações de rua, além de buscarem provocar a erosão do governo junto a sociedade, buscam fragmentar a coalizão governamental, provocando dissidências. A solução de crises governamentais no Parlamentarismo são mais reguladas. No presidencialismo são mais traumáticas: seu desfecho pode ser o impeachment ou um governo enfraquecido que se arrasta até o final do mandato.
Não há ainda uma crise governamental instalada, mas existem elementos dessa crise no atual governo. Insistimos na constatação de que o atual governo não tem comando, nem operacional e nem político. O modelo adotado por lula – o príncipe governa com um grão-vizir – não funciona. Para atenuar a crise de comando político e operacional, Lula deveria adotar um modelo de estado-maior, constituído pelos principais ministros e com gestão cotidiana sobre todo o ministério.
Por fim, é preciso falar da espantosa passividade, a quase covardia, dos governos e partidos democratas e de esquerda em face à polarização política no mundo atual. O que ocorreu nos Estados Unidos e o que ocorre não Brasil expressa duas situações singularmente ilustrativas dessa realidade. Em seu primeiro governo, Trump promoveu uma série de insanidades e de atos maldosos que culminaram com a incitação à invasão do Capitólio e tentativa de golpe de Estado. O governo Biden e os Democratas tinham em mãos material impressionante para impor uma derrota política definitiva, nos últimos quatro anos. Deveriam ter ativado a tese de que “a linhagem principesca anterior” deveria ser extinta. A sua passiva incompetência permitiu um retorno triunfal de Trump.
O mesmo ocorre aqui no Brasil. Bolsonaro e o bolsonarismo produziram material extraordinário, permitindo inúmeras oportunidades para que fossem destroçados politicamente. Estão aí fortes e na ofensiva contra o governo. O governo Bolsonaro foi hiperativo politicamente comparado com o governo Lula.
A mansuetude dos democratas e das esquerdas decorre de que se tornaram políticos de gabinetes, almofadinhas de jantares e festas, que adoram frequentar os círculos das elites. Não há mais traços plebeus nessa gente. Acreditam na união, paz e concórdia diante de inimigos que querem ver sangue. Adotar a política da passividade e da concórdia em face de inimigos que investem na polarização representa cavar a derrota. É certo que Lula (e Biden) como presidente deve pregar os valores da união e da paz. Mas num mundo de guerras políticas deve mandar seus generais fazerem a guerra e ele mesmo deve adotar o discurso da ambiguidade da guerra e da paz.
Aldo Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e Política e autor de Liderança e Poder.
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