É preciso dar um jeito, por Gilberto Carneiro
O SONO expressava sua irritação através dos bocejos recorrentes diante da minha insistência em manter as pálpebras abertas altas horas da noite. Foi quando entre uma piscadela e outra em frente à TV ouvi a voz em inglês da apresentadora anunciando que a vencedora do Globo de Ouro, na categoria de Melhor Atriz em Filme de Drama, havia sido a atriz brasileira Fernanda Torres, por sua atuação impecável no filme “Ainda estou aqui”, dirigido por Walter Salles, adaptado do livro homônimo escrito por Marcelo Rubens Paiva, filho de Rubens Paiva, ex deputado federal que em decorrência da sua luta contra a repressão do regime militar foi preso e assassinado no ano de 1971, cujo corpo nunca foi localizado.
O ponto de partida é o cotidiano da família Paiva que reside no Rio de Janeiro. Gradualmente, a leveza e alegria daquela casa vão sendo capturadas, até um dia essa harmonia ser violentamente interrompida quando agentes da Ditadura Militar, sem qualquer explicação plausível, levam Rubens Paiva, sob o olhar incrédulo e apreensivo dos filhos e de sua esposa, Eunice Paiva, ambos interpretados por Selton Melo e Fernanda Torres.
A partir do dia em que as cortinas se fecham na casa dos Paiva o que se espera é o desespero, o choro, a dor, porém o que se presencia é a força e determinação de uma mulher que supera a agonia, a aflição, a angústia, o padecimento e mantém-se obstinada em busca de respostas sobre o paradeiro do seu esposo. Sua postura rompe com a obviedade porque a dor precisou ser acolhida e vivida de uma outra maneira. Diante da tortura, o silêncio, a intrepidez e o sorriso são como estratégias para que a vida de alguma forma possa encontrar caminhos para sobreviver ao caos e à experiência indescritível de ter sua família como alvo de um projeto político de desumanização.
O sorriso é sua arma e deixa manifesta essa atitude quando um jornalista tenta convencê-la da necessidade de fazer uma expressão triste para a foto do jornal estrangeiro sobre a matéria do desaparecimento do seu companheiro. Em resposta sorri, e pede aos filhos que façam o mesmo.
O sorriso é a sua resistência, o seu ato de subversão rompendo com a lógica do torturador, cuja personalidade doentia expressa o prazer macabro ao presenciar a dor e o sofrimento das suas vítimas, até porque “não é necessário chorar para sofrer”, como bem pontuou Dilma Rousseff, citada em excelente artigo de Fernando Domingos Júnior.
Rubens Paiva nunca mais voltou para sua família, e um dos momentos enigmáticos do filme é quando Eunice Paiva recebe o atestado de óbito do esposo sem direito ao corpo e comenta: “é estranho, mas as circunstâncias talvez expliquem estar aliviada por receber um atestado de óbito da pessoa que você ama”.
A resistência de Eunice Paiva e dos seus filhos foi fundamental para fortalecer a impressão que o mundo tem sobre a ditadura militar brasileira, como instrumento de promoção da desumanização.
A Ditadura é uma nódoa inexpugnável da nossa história, mas enganam-se os que acham que é coisa do passado. Os filhotes da Ditadura que promoveram os atos golpistas do 8 de janeiro expuseram uma banda podre dos quartéis que alimenta a intenção de levar a cabo uma nova ruptura democrática. Associe-se a este contexto o movimento das grandes corporações americanas no mundo das redes sociais, os todo poderosos Zuckerberg e Elon Musk, que caminha para banir toda e qualquer ferramenta de checagem e de moderação de conteúdos na internet, transformando as plataformas em terra de ninguém, campo fértil para a proliferação do discurso de ódio e da desinformação.
E em meio a tudo isso há uma outra ameaça, a opressão exercida por órgãos de persecução penal, que fazem uso estratégico do sistema jurídico na política e na mídia como arma jurídica para destruir adversários políticos, desrespeitando os procedimentos legais e princípios democráticos inexpugnáveis do nosso modelo constitucional, a exemplo da presunção de inocência, a ampla defesa e o contraditório, como foi o caso da famigerada Operação Lava Jato e sua franquia na Paraíba, a indigitada operação Calvário.
Um dia eu também fui levado de casa abrupta e injustamente na presença das minhas filhas e da minha esposa, sofrendo todo tipo de tortura psicológica para revelar o que não se sabia, não por agentes da ditadura, mas por operadores do direito que manipulam o sistema da justiça para fins políticos, atribuindo aparência de legalidade aos seus atos, utilizando os meios midiáticos para influenciar a opinião pública com o intuito de prejudicar adversários ou oponentes políticos, destruindo reputações através de inúmeros processos judiciais sem justa causa, baseados exclusivamente nas famigeradas colaborações premiadas, o que modernamente tem-se conceituado como guerra jurídica ou law fere.
Minha esposa, minha Eunice Paiva, manteve-se firme, engoliu o choro, maquiou a dor e escondeu o desespero com a postura destemida e impetuosa na proteção das nossas filhas, lutando obstinadamente pelo meu retorno para casa, com apoio dos dedicados e jovens advogados que atuam em minhas causas, mesmo quando o sufoco financeiro não me permitiu honrar com os honorários.
Depois de dois meses voltei, mas ainda falta contar esta história sob o ângulo da perseguição implacável da qual eu, minha família e outros companheiros fomos alvos, a verdadeira história que um dia será revelada em todos os seus detalhes atribuindo nomes aos torturadores e perseguidores, em meio a dor, aos traumas e todo tipo de dificuldades enfrentadas até hoje.
E esperar que surja um Marcelo Rubens Paiva para escrever sobre este meio de tortura, um Walter Salles para cinematografar e uma Fernanda Torres para representar escancarando os horrores deste sistema judicial perverso, torturador, cruel, destruidor de reputações, responsável por traumas irreparáveis e que mata. Luiz Carlos Cancellier de Olivo, reitor da UFSC, o nosso Rubens Paiva lawfereano, foi uma das vítimas icônicas.
Eu cheguei de muito longe
E a viagem foi tão longa
E na minha caminhada
Obstáculos na estrada
Mas enfim aqui estou
Mas estou envergonhado
Com as coisas que eu vi
Mas não vou ficar calado
No conforto, acomodado
Como tantos por aí
As pessoas são levadas
Pela mão de gente grande
Quem me trouxe até agora
Me deixou e foi embora
Como tantos por aí
É preciso dar um jeito, meu amigo
É preciso dar um jeito, meu amigo
Descansar não adianta
Quando me levanto
Quanta coisa aconteceu
É preciso dar um jeito, meu amigo
É preciso dar um jeito, meu amigo
Um dia também levaram o presidente LULA e só o devolveram para o seio da sua família e dos seus amigos 581 dias depois. Acham que isso é coisa do passado? Está tudo concatenado e o cenário político atual tende a intensificar a disputa por poder. Alguém tem dúvidas do reagrupamento das forças malignas que tramam uma ruptura institucional, a desregulação das redes sociais e a utilização dos órgãos de persecução penal como arma jurídica para destruir adversários políticos com o propósito de interferir nas eleições de 2026? Por esta razão, de onde está, o Tremendão lhe manda um alerta, presidente Lula: “É PRECISO DAR UM JEITO, MEU AMIGO”.
Gilberto Carneiro da Gama – Advogado, ex-Procurador Geral do Estado da Paraíba
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