Em entrevista concedida ao jornalista Gerson de Faria, o cineasta José Walter Lima, autor de sete longas-metragens, entre os quais Brazyl – Ópera Tragicrônica, em cartaz desde novembro de 2024 fala sobre as diferenças de estilo e de custos da sua produção para com Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, e das dificuldades enfrentadas pelo cinema nacional em pleno século XXI, como a falta de uma política de Estado, o número restrito de salas e a padronização de uma estética global. 

Dois filmes nacionais (Brazyl – Uma ópera Tragicrônica e Ainda Estou Aqui) e duas abordagens diferentes sobre o mesmo tema. Até que ponto eles se alinham e ou divergem?

São duas propostas estéticas completamente diferentes, mas que se complementam. As duas são válidas do ponto de vista político. O Ainda Estou Aqui, de Walter Sales, é muito bem realizado, uma produção impecável. O filme é importante e necessário nesse momento que a democracia está ameaçada no mundo todo. Ele aborda a questão da ditadura brasileira que assassinou Rubens Paiva.    

Brazyl tem uma abordagem contemporânea, cujo conteúdo é o aqui e o agora, também nos levando ao passado para refletir sobre o presente. 

Nosso filme, do ponto de vista de produção e das questões técnicas, não dá para comparar com “Ainda Estou Aqui”, uma produção milionária.

A nossa proposta estética é completamente diferente da de Salles. Ele optou por uma estética de Hollywood e da rede Globo e o nosso é de vanguarda, um cinema de guerrilha, que segue o caminho da linha evolutiva da arte.

O filme de Walter Sales optou por uma linguagem internacional padronizada, que ao longo dos anos vem dominando e escravizando o brasileiro e o resto do mundo. Essa estética de Hollywood que a rede Globo imita (novelas e filmes) vem bitolando cada vez mais o público. Até a nossa própria esquerda é colonizada. O lema do cinema de vanguarda é: Abolição estética já!!!

Recentemente, a Folha de S. Paulo publicou reportagem apontando para o maior desafio do cinema nacional: o brasileiro não vê filmes brasileiros. Isso apesar da lei de incentivo ao audiovisual e à cota de tela. Além do desmantelamento promovido pelo bolsonarismo, quais são os gargalos que emperram o desenvolvimento da indústria cinematográfica nacional?

O Brasil não vê o cinema nacional porque é um país colonizado, é um povo iletrado. O brasileiro não conhece o Brasil e não tem o menor interesse em conhecê-lo, porque é um povo escravizado pela estética hollywoodiana. O que temos mesmo é um cinema marginalizado e dominado pela estética da direita. 

Essa coisa de dizer que o audiovisual está bombando é uma grande mentira. É uma falácia! A maioria dos filmes não faz nem 5 mil espectadores. Um país que é dominado pela estética de direita, isso acaba tirando o público de nossos filmes. 

Vamos acabar com esse oba-oba da cultura camarote dos festivais e parar com esse negócio de ficar imitando Hollywood. Tá na hora de puxar o tapete vermelho e encarar a nossa realidade. 

Na verdade, o que sobrou para nós foi a rampa para o fracasso. A política do cinema é uma questão de Estado. O Lula prometeu que ia fazer uma revolução cultural, disse que iria jogar uma bomba atômica na cultura brasileira e terminou soltando um traque que deu chabu.

Não é falta de capacidade produtiva porque só nesse ano foram mais de 200 longas-metragens.

Além das comédias, com suas estrelas globais, que sempre pontuam as listas de melhores bilheterias, prevalecem as grandes produções e elencos igualmente estrelados. É o caso de Ainda Estou Aqui, com orçamento de 8 milhões de reais e que já arrastou 3 milhões de pessoas aos cinemas. De outro lado há o seu filme, com orçamento de curta-metragem de 300 mil reais e que luta para se pagar. Como desfazer esse desequilíbrio?

Não adianta produzir mais de 250 longas-metragens por ano, porque não temos como escoar essa produção. Creio que a solução seria investir em mais salas, na distribuição, e procurar outros mecanismos tais como: mercado externo, ou, por exemplo, fazer acordos com os países dos Brics, para colocar os novos filmes nesses mercados, não só nas salas, mas também nas tevês estatais. Também temos que desburocratizar e abrir o nosso mercado para a produção desses países e ver a possibilidade de firmar convênios de coprodução e codistribuição. Enfim, aquela velha questão, falta gestão e gente que conheça os meandros do setor.

Para refazer esse desequilíbrio é necessário urgentemente que o governo debruce num estudo sério, detectando quais são os problemas reais do audiovisual e das linguagens artísticas. E exigir que a Ancine execute os programas aprovados e discutidos pelo setor.

Não adianta fazer seminários, congressos para discutir os problemas e, na hora da execução, eles fazerem o que quiserem. É necessário haver uma política de Estado. Os governantes brasileiros precisam levar a sério a indústria criativa brasileira.

Precisamos conquistar o mercado interno e externo. Investir mais na difusão da nossa cultura. Quando eu era jovem, assisti no Instituto Goethe, todo o ciclo do cinema expressionista alemão. Vi quase todos os filmes da Nouvelle Vague, na Aliança Francesa. Precisamos de Institutos dessa natureza para difundir a nossa cultura no exterior. No caso do cinema, é mais que necessário a criação de distribuidoras que atuem no mercado europeu, asiático e latino, colocando os nossos filmes nesses países. O que há é um desgoverno total desde a criação de Vera Cruz. Gestores incompetentes, que só fazem o feijão com arroz, que não têm a cosmovisão das questões do audiovisual.

Os editais em apoio aos projetos de produção audiovisual não suprem a demanda?

O problema maior dos editais começa com a escolha dos projetos, que não são lidos, a escolha é feita através de cotas. É uma gente iletrada, julgando os nossos trabalhos através de IA. É dá maior importância à escolha de notáveis para compor as comissões, para analisar e avaliar os argumentos e roteiros, ou seja, o conteúdo de cada projeto. Hoje em dia o que conta mesmo é a política de cotas, a cultura é quem vem pagando a reparação social. Os editais viraram um programa do Bolsa Família. O que vemos é um desastre total porque eles só escolhem os piores, nivelando sempre por baixo. É uma gente iletrada, que fica de salto alto, se arvorando em dona da cultura brasileira.

Uma gente que não conhece os meandros do setor. O governo tem que ser mais criterioso na escolha dos seus gestores, tem que saber se a pessoa tem capacidade para ocupar aquele cargo. Deveria ter um órgão para acompanhar o desempenho da sua equipe, em todos os níveis. Enquanto isso, estamos assistindo a falência de todo setor cultural.

O Neoliberalismo conseguiu destruir as artes, transformou tudo em entretenimento. O que vemos hoje é a uberização da cultura.

Veja o que aconteceu com a música popular brasileira. Era considerada uma das melhores do mundo, virou uma porcaria. Eles conseguiram acabar com a indústria fonográfica e estão acabando com o cinema. Só eles conseguem colocar os seus filmes nas salas, o resto vai tudo para a esgotofera. 

O cinema brasileiro é marginalizado?

O Brasil é um poço cheio de problemas. Mas se você mostra o seu lado pocilga, as pessoas vêm dizendo que é filme destrutivo, sem perspectiva.  Não percebem que o Brasil é mais grandioso do que qualquer obra de arte. Tom Jobim dizia que aqui tudo era uma porcaria, mas era muito bom. 

O Brasil tem brasileiros geniais, mas a maioria vive no anonimato, só conseguem se destacar quando ganha algum prêmio fora do país, muitos vivem num total ostracismo. Os filmes não são vistos e as peças têm vida curta. Escritores que não conseguem publicar.

O cinema brasileiro é e sempre foi um cinema marginalizado. Sempre foi, mas hoje está muito pior. Na época de Embrafilme, tínhamos uma distribuidora estatal poderosa, bastante atuante. Por causa disso, conseguimos ter alguma visibilidade. Tínhamos a Lei do Curta. Mas, infelizmente, este é um país de entreguistas, vendidos ao capital internacional, principalmente no Congresso. A maioria joga contra a cultura brasileira. Um bando de vira-latas desclassificados.

Há quem veja na transposição de Brazyl do palco para as telas de forma negativa. Segundo essa visão, isso não seria cinema.

Porra! O título já diz que é uma ópera, esquecem que primeiro veio a peça e depois o filme. Não é um filme, é o audiovisual, é uma mistura de linguagens, é um filme de vanguarda. Dizer que não é cinema é um absurdo, a arte é livre, é uma viagem cósmica transcendental, você pode fazer o que quiser. Tudo que é imagem em movimento é cinema. Eu optei pelo cinema autoral de cunho artístico. Brazyl é cinema, é teatro, é dança, é fotografia, literatura, música etc. Ou seja, um conjunto de elementos para compor uma narrativa fílmica. O que acontece é que as pessoas estão bitoladas, colonizadas e escravizadas pela estética do neoliberalismo, o sistema quer destruir o cinema independente, mas não vai conseguir, porque nós representamos o sonho, a utopia e a humanização da sociedade.

O Brasil não é um país sério. Se você fizer um trabalho sério, é escanteado pela direita e pela esquerda, pela mídia e pelos festivais.   

Como fazer um longa com menos de 50 mil dólares? Qual o impacto na própria estética do filme? Há quem veja a transposição de Brazyl, do palco para as telas, de forma negativa. Segundo essa visão, isso não seria cinema.

Não é fácil fazer um longa sem edital, com orçamento de pouco mais de 300 mil reais, o orçamento de um curta metragem. As gravações foram feitas em 5 dias, num espaço muito pequeno que não dava nem para fazer uma panorâmica, os movimentos de câmera eram bastante limitados, praticamente trabalhamos com planos americanos e closes. 

É o seguinte: nós conseguimos uma emenda parlamentar com o deputado estadual Carlos Giannazi, por São Paulo, que deu para realizar as gravações. Toda a parte de finalização foi feita com recursos próprios, meu e de Vítor Rocha, da Abará Filmes, que terminou entrando no filme como produtor associado. Não pensamos em bilheteria, era um projeto de cinema ideológico, nós apostamos na conscientização política das pessoas.  

Quem vê o filme de uma maneira negativa é porque não é uma pessoa politizada.  Trata-se de um filme de esquerda. O filme é resultado de uma peça de teatro, que foi encenada no Teatro Oficina em 2019. Toda imagem em movimento é cinema, aliás o filme é bem mais um audiovisual porque nele misturo várias linguagens (teatro/cinema/fotografia/ pintura/dança/literatura/ poesia e música). São várias linguagens na mesma obra.

Outra crítica que se faz ao seu filme é que ele fala para uma bolha de convertidos de esquerda.

Meu filme não é um panfleto ideológico. O que pretendemos com ele é falar para todos os brasileiros, seja de direita, seja de esquerda. O que importa mesmo é denunciar o fascismo, a barbárie e a corrupção que vem tomando conta desse país.

Há espaço para um cinema politicamente engajado no cenário atual?

Está cada vez mais difícil. Eu sou adepto do cinema poético, político e filosófico. Continuo seguindo as escolas do Neorrealismo, da Novelle Vague e do Cinema Novo. Não sei se estou ultrapassado, mas ainda persisto no cinema de autor.

Não gosto dessa terminologia cinema engajado. Prefiro Cinema Revolucionário! Um cinema que quer um mundo melhor, que luta para mudar a natureza da sociedade. O cinema não vai mudar o mundo, mas pode ajudar a conscientizar as pessoas. É uma ferramenta poderosa, muito útil para combater o analfabetismo político e cultural que cada vez mais vem se expandindo, principalmente nos tempos da telinha diabólica que pode promover guerras e derrubar governos com ajuda dos algoritmos. Satanás tomou conta do audiovisual!

Como você vê o streaming no processo de produção e exibição? 

O streaming é dominado pelas locadoras multinacionais, que possui uma estrutura tecnológica bastante complexa. A ideia é genial, mas é diabólica, porque termina destruindo toda a cadeia produtiva: produção/distribuição/exibição. As pessoas da cultura camarote, preferem ver os filmes pela telinha e para os produtores independente isso foi um tiro no canhão. Estamos comendo o pão que o diabo amassou. O streaming vem tirando completamente o público das salas, que por sua vez ajudam a afugentar o povo, cobrando preços abusivos e oferecendo uma projeção de péssima qualidade. O que vem acontecendo é que o cara paga R$ 50,00 (cinquenta reais) por mês e tem uma quantidade de filmes enorme à sua disposição, onde assiste em casa com uma projeção superior à das salas. Não sei qual é a saída, pressinto que estamos caminhando para o abismo.  

Você já assumiu papel executivo na condução da política cultural da Bahia. Como você vê o sistema de financiamento e arrecadação para a produção do audiovisual nacional?

Precário. Falta, como falei anteriormente, uma política de estado para o cinema brasileiro, aliás para todas as linguagens. O principal entrave para o desenvolvimento da indústria cinematográfica nacional é a falta de salas. Os EUA têm 40 mil salas, aqui nós temos em torno de 3.300 salas, que é muito pouco para um país com dimensões continentais. 90% das nossas salas estão nos shoppings e nas mãos das majors. Só sobrou para o cinema independente algo em torno de 25 salas. 

Não dá para competir com filmes e grandes orçamentos. Veja o caso do filme Divertida Mente 2, que estreou em 2.200 salas e teve um faturamento de 400 milhões de reais, que eu chamo de Absurdamente 2

Faz 50 anos, que venho assistindo o “enterro da última quimera” do cinema brasileiro. Nada mudou até agora, são os mesmos problemas! A classe média adora o cinema americano e o povão as novelas da rede Globo. Estamos, no século XXI, assistindo de camarote, o fracasso do cinema brasileiro, que está indo para o abismo.

Faz 50 anos que é impossível competir com filmes das grandes corporações, que ocupam, a cada estreia, entre 900 a 2 mil salas.

As produções da Globo e as de Hollywood pontuam com as melhores bilheterias, porque eles têm as salas e as mídias nas mãos.

Conversando com o grande Zelito Viana, ele me disse o quanto Terra em Transe, foi um relativo fracasso de bilheteria na época. E o filme hoje está entre os 20 melhores do mundo. 

O Brasil é um país sui generis. Um país periférico, mas com uma cultura de centro, como dizia Umberto Eco. É preciso alguém de fora para dizer isso, mas a nossa cultura está sendo jogada na lata de lixo. Temos que voltar a valorizar a nossa cultura popular e erudita, que são riquíssimas. Pensemos no Brasil, em nosso povo e na nossa maneira de ser, que tem que ser vista pelo brasileiro. Afinal qual é o caminho? A efemeridade ou a posteridade?

O que seria uma política eficaz para consolidação de uma indústria do cinema no Brasil? O cinema deveria ser tratado como valor patrimonial como entendem os franceses, ministrado nas escolas e que conta com toda uma engrenagem de incentivos?

Sim, claro. Totalmente. Eu aprendi muito com o cinema. Linguagens fundamentais. Com sabedorias. Combater o fascismo é necessário e apontar as feridas abertas das atrocidades da ditadura. Ambos os filmes destacam o período da ditatura, só que no Brazyl – Uma Ópera Tragicrônica a ditadura é tratada como um fato histórico do passado, para compreender o presente. O que importa mesmo são as denúncias de um país degradado, dilapidado pela classe dominante, e completamente subserviente ao capital internacional.

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Last Update: 23/01/2025