Enquanto esperavam o pastor convidado para ministrar o culto na igreja Comunidade Resgaste, em Guaianases, na Zona Leste de São Paulo, os fiéis ouviam a pregação de outro visitante, que mais cantava do que pregava porque, na verdade, não era pastor, e sim um sargento da Polícia Militar.
Ronaldo Almeida chamava a atenção não pela afinação, mas porque havia subido ao púlpito fardado, com direito a quepe, botas, colete à prova de balas e revólver na cintura.
Naquele dia, o pastor convidado era Marco Feliciano, deputado federal e uma das figuras mais conhecidas da bancada evangélica. Mas ele chegou à igreja com quase duas horas de atraso, porque havia participado de uma vigília de oração durante a madrugada.
Esta cena insólita abre o primeiro capítulo do livro A Bancada da Bíblia – Uma História de Conversões Políticas, do jornalista André Ítalo Rocha.
A obra, vencedora do Prêmio Todavia de Não Ficção, traça as origens da mistura entre religião e política no Brasil, procurando mostrar de que modo a bancada evangélica influenciou a política nacional. Rocha explica que, embora exista um senso comum de que se trate apenas de uma bancada ideológica, focada em pautas de costumes, como aborto e casamento gay, a realidade é bem mais complexa.
“A história da bancada mostra que eles agem como qualquer deputado do chamado Centrão, até porque muitos deles são ligados a partidos do Centrão”, explica o autor. O livro aponta a Constituinte de 1988 como um momento crucial para o fortalecimento dessa bancada.
Boa parte desses parlamentares aceitou votar a favor do mandato de cinco anos para José Sarney em troca de concessões de emissoras de rádio. “Naquele momento, eles aprendem o jogo da política e não esquecem mais. Até hoje tem sido assim”, diz Rocha. “Eles se expõem na mídia para falar de pautas de costumes, para agradar aos eleitores evangélicos, mas são discretos para negociar outros projetos, inclusive os que favorecem institucionalmente as igrejas, como aqueles ligados a questões tributárias.”
Rocha lembra que, antes da Constituinte, não se viam deputados evangélicos unidos em defesa de uma pauta relacionada à doutrina das igrejas. Foi, inclusive, no contexto da Constituinte que surgiu a expressão “bancada evangélica”.
A primeira vez em que o termo foi utilizado, de acordo com o autor, foi em 1986, em uma matéria da Tribuna da Imprensa do Rio de Janeiro. No ano seguinte, o Correio Braziliense cobriu a primeira reunião, em Brasília, dos parlamentares evangélicos, na casa do deputado Dasso Coimbra (PMDB–RJ).
Desde então, a bancada evangélica só foi ampliando sua atuação, tornando-se uma força cada vez mais relevante no cenário partidário. Em 2018, o grupo deu amplo apoio a Jair Bolsonaro, encampando pautas de cunho religioso e difundindo ideias a respeito das “ameaças comunistas”.
Em 2022, Lula venceu a eleição e assumiu uma posição de não confrontar os evangélicos. Ele concedeu isenções fiscais às igrejas e há, no governo, a ideia de se instituir o Dia do Pastor e da Pastora. “Há um esforço do presidente Lula para repetir a estratégia adotada em seu primeiro governo, tentando uma aproximação dos evangélicos por meio de gestos simbólicos”, diz o autor. “E há uma parcela da bancada que segue disposta a negociar com Lula, como os deputados ligados ao Republicanos, partido controlado pela Igreja Universal.”
O velho ditado popular que dizia que política e religião não se misturam há muito deixou de ter validade. •
VITRINE
Por Ana Paula Sousa
Foi Sueli Carneiro, autora-farol do movimento negro feminista, quem se encarregou da pesquisa e da escrita de Lélia Gonzalez: Um Retrato (Zahar, 128 págs., 49,90 reais), perfil biográfico da ativista e pesquisadora que pavimentou o caminho pelo qual a própria Sueli seguiria.
A Editora Capivara, de Pedro Corrêa do Lago,“dono da maior coleção privada de manuscritos do mundo”, acrescenta a seu catálogo Iconografia Baiana na Coleção Flávia e Frank Abubakir (320 págs., 195 reais), que reúne obras de arte, mapas e livros ligados à Bahia do século XVII ao XIX.
A língua segue em faísca, nos diz, em um dos versos de A Menor das Tempestades (Editora 34, 136 págs., 54 reais), o maranhense Josoaldo Lima Rêgo, que além de poeta é geógrafo e, talvez por isso, se revele tão hábil em esculpir paisagens a partir das palavras.
Publicado na edição n° 1346 de CartaCapital, em 29 de janeiro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O Parlamento e a Bíblia’