A maioria das grandes atrizes, em algum momento da carreira, tem de interpretar uma freira. Trata-se quase de um rito de passagem teatral. Isabella Rossellini cumpriu essa etapa em sua primeira aparição na tela, aos 24 anos, no pouco lembrado musical de Vincente Minnelli Questão de Tempo (1976), num papel secundário ao lado da mãe, Ingrid Bergman, a lenda do cinema três vezes vencedora do Oscar.

“Minha mãe interpretava uma condessa excêntrica que estava morrendo, e pensou que uma das freiras que a assistiam na morte poderia ser eu”, lembra ela. “Como éramos parecidas, ela pensou que seria interessante a condessa se ver como jovem em mim, numa espécie de alucinação. Mas também acho que ela queria me tentar a ser atriz.”

Quase meio século depois, Isabella volta a usar um véu, com efeito mais bem-sucedido, em Conclave, o emocionante ­thriller de Edward Berger sobre o Vaticano, em cartaz no Brasil desde a quinta-feira 23.

Interpretando Irmã Agnes, uma freira severa que supervisiona a limpeza em uma eleição papal, ela é, durante grande parte de suas ações, uma figura enganosamente silenciosa, mas tem uma fala curta e contundente que muda o equilíbrio do filme protagonizado também por Ralph Fiennes e Stanley Tucci.

“Eu interpreto uma sombra”, diz a atriz. “A Igreja Católica é muito patriarcal, só os homens são cardeais, mas as freiras não são subservientes. Elas têm um poder enorme. Era importante salientar o silêncio, mas esse silêncio não precisa ser impotente. Cresci em Roma e estudei numa escola católica. Soube interpretar isso porque vivi isso.”

“Com a idade, você engorda, ganha rugas e perde um tipo de beleza. Mas, com isso, vem junto uma liberdade”

Aos 72 anos, Isabela Rossellini fica feliz em assumir papéis menores, com menos falas e impacto concentrado. Ao interpretar Irmã Agnes, ela pensou em sua longa carreira de modelo e em algo que aprendeu com o fotógrafo Richard Avedon: “Ele disse: ‘Quando você está modelando, está atuando’. Modelos não têm palavras, mas ainda assim emocionam. Como Agnes, não tenho muitos diálogos, mas sou uma presença definitiva”.

Embora Rossellini nunca tenha tido um longo intervalo fora das telas, sua carreira de atriz se renovou nos últimos anos, com personagens excêntricas, com papéis coadjuvantes animados em filmes que vão de Joy, o Nome do Sucesso (2015), de David O. Russell, a A Quimera (2023), de Alice Rohrwacher.

“Também sinto isso”, diz ela quando sugiro que armou um retorno sutil às telas. “Minha mãe, que morreu com 67 anos, me disse que às vezes as atrizes têm uma queda na carreira quando não são nem jovens nem velhas: 45 a 55 ou 60 anos. Não é que você não possa ter interesses amorosos nessa altura da vida, mas essa história não é contada. Depois, quando fica mais velha, você consegue mais papéis.”

Na meia-idade, quando trabalhou em filmes como Veludo Azul (1986) e A Morte lhe Cai Bem (1992), Isabella sentiu que os papéis melhores estavam diminuindo, como Ingrid Bergman havia alertado.

Desde sempre, a fama. Acima, Roberto Rossellini e Ingrid Bergman, seus pais. Abaixo, uma das inúmeras campanhas de Isabella para a Lancôme – Imagem: Acervo/Donald Spoto

Então, ela voltou para a universidade, em uma jornada acadêmica muito diferente de seus primeiros estudos em figurino e moda, retornando à sua paixão de infância por animais. “Fiz um mestrado em Etologia, que é a ciência do comportamento animal, e comecei a fazer meus próprios pequenos filmes sobre isso, e escrevia monólogos. Assim criei uma carreira paralela à de atuação.” Ela sorri: “Mas então a atuação voltou”.

Não foram apenas os papéis principais que abandonaram Rossellini em seus 40 anos: sua carreira de modelo também foi afetada – em particular, seu conhecidíssimo trabalho como a face dos cosméticos Lancôme. Aos 43 anos, quando os executivos da Lancôme disseram que ela estava velha demais para representar a marca, foi sumariamente demitida – num episódio que causou muita polêmica. Mas, então, 20 anos depois, em 2016, aos 63, a Lancôme convidou-a para voltar.

“A diferença agora é que as executivas são mulheres”, diz. “E elas entendem que a ideia de maquiagem usada apenas como ferramenta de sedução é reducionista. Porque maquiagem é para todas: é muito mais inclusiva, e é uma ferramenta de criatividade.”

Ela observa com certo prazer a ironia de ter sido escalada para A Morte lhe Cai Bem, a sátira de Robert Zemeckis sobre o preconceito de idade em Hollywood, como uma mercadora sobrenatural da juventude eterna – pouco antes da saída da Lancôme. “Fiquei encantada por estar naquele filme”, diz, animada.

Pergunto se viu A Substância, o bodie horror de Coralie Fargeat que me parece uma espécie de A Morte lhe Cai Bem atualizado, examinando as preocupações sobre Hollywood descartar mulheres mais velhas e empurrá-las para um terreno mais violento e radical.

Por volta dos 50 anos, quando viu os papéis escassearem, a atriz resolveu fazer um mestrado sobre o comportamento dos animais

Seu rosto imediatamente se ilumina de entusiasmo. “É brilhante! Adoro a fúria feminista e o humor desse filme.” Ela elogia suas estrelas, Demi Moore e Margaret Qualley, que Rossellini só recentemente descobriu ser, como ela, uma “bebê” da indústria. “Tinha ficado impressionada com a atuação dessa jovem atriz, e depois alguém me contou que ela é filha de Andie MacDowell”, diz. “Fiquei muito orgulhosa, de certa forma. Sim! Nós somos filhas-de…!”

É uma deixa óbvia para uma pergunta delicada, que pode atrair respostas frágeis de outros filhos e filhas-de, para usar sua expressão. Como filha não apenas de Bergman, mas do reverenciado diretor neorrealista italiano Roberto ­Rossellini, ela ofende-se com o discurso em torno do termo nepo baby? Ela franze a testa e me pede para repetir as palavras. Depois de um segundo, ri. “Ah, ‘nepo’ como em ‘nepotismo’? Isso é muito engraçado.”

Ela diz ter sentimentos mistos sobre o assunto. No início da carreira, achava a celebridade herdada uma espécie de faca de dois gumes: “É claro que abre portas, porque as pessoas ficam curiosas para ver você. Mas não sei se foi uma vantagem. O julgamento é muito mais severo, e você não tem tempo para crescer”.

Ela pensa no primeiro papel substancial que teve no cinema, em Il Prato (1979), dos irmãos italianos Paolo e ­Vittorio ­Taviani. A dupla de cineastas vinha da Palma de Ouro no Festival de Cannes, por Pai Patrão (1977), e muitos críticos, principalmente na Itália, não foram nada gentis: “Olhando para trás, não foi um filme ruim, e eu não fiz um trabalho ruim”, diz, encolhendo os ombros. “Mas havia grandes expectativas, e as críticas foram excruciantes. Parei e disse: não vou ser atriz.”

Exceto por uma aparição peculiar como ela mesma numa comédia de Roberto Benigni, Il Pap’occhio (1980), ela manteve a palavra por seis anos, já que uma carreira de modelo a chamava e sua vida pessoal se complicou. Ela teve um casamento de três anos com Martin Scorsese e outro, de curta duração, com o colega modelo Jon Wiedemann, que lhe deu sua filha Elettra.

Elettra nasceu menos de um ano após a morte de Ingrid Bergman, por câncer de mama, em 1982. Em meio à dor e às dificuldades da maternidade recente, Isabella foi chamada por Hollywood: a convidaram para fazer o brilhante drama O Sol da Meia-Noite (1985). Finalmente, ela sentiu-se pronta para assumir a carreira que a mãe queria para ela. “Mamãe disse: ‘É ridículo que você não esteja tentando atuar só porque sente que será comparada a mim. Você será comparada a mim no começo. Depois eles vão esquecer’. Ela estava certa, mas, no começo, foi difícil”, relembra.

Ela morre de orgulho ao falar sobre seus pais, e ainda se debruça sobre os filmes que eles fizeram: aponta com prazer que está usando as joias de sua mãe das filmagens de Viagem à Itália (1954), o lindo e agridoce drama conjugal que Ingrid e Rossellini fizeram juntos quando a filha ainda era um bebê.

É uma fonte de tristeza para Isabella que nenhum dos seus dois filhos – ela adotou seu filho Roberto em 1993 – tenha conhecido seus pais, embora ela ache que filmes clássicos podem funcionar de maneira muito semelhante a álbuns de família. “Quando minha filha tinha uns 10 anos ou mais, perguntou sobre sua avó, e eu disse: deixe-me encontrá-la. Então apenas liguei a tevê e lá estava ela, em Anastasia.”

Sets. Entre alguns dos papéis marcantes da carreira iniciada aos 24 anos, estão aqueles vividos nos filmes Veludo Azul (1985) e A Morte Lhe Cai Bem (1992) – Imagem: MGM e Universal

O papel mais celebrado de ­Rossellini nas telas, como uma cantora de boate abusada em Veludo Azul (1986), o pesadelo suburbano de David Lynch, marcou um relacionamento de cinco anos com o próprio Lynch. Em meados dos anos 1990, ela esteve noiva de Gary Oldman durante dois anos. Depois dessa série de romances de alto nível, está sem parceiro há 25 anos. Foi uma tomada consciente de decisão de permanecer solteira?

“Acho que foi assim que a vida aconteceu”, diz. “Eu tinha filhos, e era difícil ter um relacionamento com um homem que não fosse o pai. Comecei a pensar: vou cuidar das crianças e, quando elas crescerem, estarei disponível para um parceiro. Mas então descobri a grande tranquilidade de ser solteira.” Ela faz uma pausa, como se saboreasse as palavras: “Se não tivesse feito isso, acho que não teria conseguido fazer tudo o que fiz. Tenho liberdade de movimento.”

“Talvez, se eu tivesse encontrado alguém e me apaixonado…”, ela diz alegremente, sem terminar o pensamento. “Mas não procurei um parceiro só para não ficar sozinha, porque eu não estava sozinha. Quando você está com alguém, fica muito vulnerável aos altos e baixos da outra pessoa. Consegui manter uma uniformidade e uma concentração que me permitiram estudar, fazer um mestrado na casa dos 50 anos e me concentrar no que queria fazer quando tinha 14 anos.”

Estamos falando, novamente, sobre aquele diploma em Etologia – que ela finalmente colocou em prática em 2013, ao comprar e administrar uma fazenda de 11 hectares, a quase 100 quilômetros da cidade­ de Nova York, em Long Island. A Mama Farm é um espaço comunitário com mentalidade ecológica, onde animais – incluindo aves, ovelhas e cabras – são criados, mas nunca abatidos. “Mas não tenho muitos animais. Não quero morrer e deixar meus filhos pensando: ‘Meu Deus, o que vamos fazer com 5 mil ovelhas?’”, ri.

A vida de Rossellini é um equilíbrio feliz entre família, agricultura, cinema e outras paixões mais particulares. Ela está animada para começar a turnê de um show solo escrito por ela mesma, Darwin’s Smile (O Sorriso de Darwin) – “sobre a expressão de emoção de atores e animais” –, na França. Para alguém que durante muito tempo foi o rosto de produtos antienvelhecimento, ela está, decididamente, se promovendo como idosa.

“Com a idade, você engorda, ganha rugas e perde um tipo de beleza, mas, com isso, vem uma liberdade sobre a qual pouco se fala . Mais do que liberdade, vem uma leveza. Quando você é jovem, tem muitas coisas para provar. Tem de provar que é inteligente, que é financeiramente independente, que é uma boa mãe ou pai. Existem tantas obrigações. Quando você fica velha, não está mais se provando. Não sei se sou tão inteligente ou não. Eu sou quem eu sou. Você começa a dizer: se eu não fizer o que quero fazer agora, nunca farei. E a vida torna-se mais divertida.” •


Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1346 de CartaCapital, em 29 de janeiro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A leveza do tempo’

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Last Update: 23/01/2025