A violência é um drama para o brasileiro na atualidade. Em dezembro, 20% da população a apontou como o principal problema nacional em uma pesquisa Genial/Quaest. Empate técnico com a primeira da fila, a economia, citada por 21%. O sentimento das ruas mudou em dois anos. Em abril de 2023, cem dias de Lula, a economia era tida como o maior pepino, mas por 31%. Em seguida, vinham questões sociais (22%) e, em terceiro, juntas, apareciam violência, corrupção e saúde (12%). A partir de 2024, o bolso passou a preocupar menos o povão, em razão da contínua expansão do PIB, do emprego e dos salários, enquanto o crime preocupava mais e mais. “A segurança pública é o debate mais importante no País hoje”, disse a CartaCapital o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski.
Em 15 de janeiro, o ministro enviou ao Palácio do Planalto uma versão ajustada de um plano para a segurança pública. É uma proposta ousada, cujo desenho inicial, de junho de 2024, havia sido apresentado ao presidente Lula e a governadores em 31 de outubro. Altera a Constituição para que o governo federal seja um ator com mais funções no combate ao crime. Desde 1988, essa atribuição é basicamente estadual. “Trazer para si, assumir o risco dessa fonte permanente de desgaste requer coragem política”, afirma o antropólogo Luiz Eduardo Soares, secretário nacional de Segurança Pública em 2003. Eis o motivo da resistência de certos governadores, em especial daqueles da oposição direitista, caso do goiano Ronaldo Caiado e do mineiro Romeu Zema, ambos presidenciáveis. Na visão de Caiado, o plano tira autonomia dos estados.
“A segurança pública é o debate mais importante no País hoje”, afirma o titular da Justiça
Lula, comenta um colaborador, não tem pressa nesse debate e até vê vantagem nas críticas dos governadores. O presidente, prossegue, quer que a discussão se prolongue, para ficar claro na opinião pública que o governo não merece pagar o pato pelos problemas na área da segurança, já que essa é estadual. Daí não haver prazo para mandar ao Congresso o projeto de Lewandowski. O ministro fez cinco reuniões com governadores após apresentar a primeira versão do plano, em outubro, e antes de finalizar a nova. Dessas conversas nasceu a ideia de inserir na Constituição um dispositivo que reafirme o poder dos estados para legislar e decidir sobre segurança pública. Lula ainda espera, porém, que a Secretaria de Relações Institucionais da Presidência conclua as consultas aos governadores. Até agora, os estados teriam pedido mais verba federal, entre 10 bilhões e 15 bilhões de reais, sem oferecer contrapartidas.
O ministro da Justiça parece ter um sentido de urgência, movido pela desconfiança de que o abacaxi caiu faz tempo no colo federal. E, mesmo com seu plano ainda na gaveta presidencial, baixou em 17 de janeiro três portarias que, na prática, materializam o espírito da mudança constitucional pretendida. Uma destina-se a enfrentar o crime organizado. As outras duas, a conter abusos policiais. “O País, a sociedade brasileira, precisa rediscutir esse modelo (desenhado em 1988)”, comentou naquele dia.
Pela proposta de emenda constitucional, o País teria uma Política Nacional de Segurança Pública, a abranger inclusive o sistema penitenciário, desenhada em Brasília. A União seria a cabeça das diretrizes de combate ao crime e coordenadora do Sistema Único da Segurança Pública. O SUSP existe desde 2018, mas na lei em vigor não há a figura de um coordenador das estratégias de ação. A PEC também coloca na Constituição dois fundos vigentes, o da Segurança Pública e o Penitenciário, e os protege de bloqueios de verba pela equipe econômica.
Ambos têm, juntos, 2,5 bilhões de reais por ano. Lewandowski defende ainda ampliar o raio de ação da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal. E tornar obrigatória a criação de corregedorias e ouvidorias nas polícias brasileiras. Estas trabalham mal e têm culpa pela violência, na avaliação do ministério. “A PEC possui uma visão sistêmica, é uma alternativa às ideias pontuais da direita, como endurecimento de penas e castração química”, disse Lewandowski à reportagem.
Encorpar a PF e a PRF é a face repressiva do plano. As duas têm uma tropa de tamanho parecido, 13 mil e 12 mil. O ministro pretende fazer da PRF uma espécie de “PM federal”. Nos estados, a Polícia Civil investiga crimes, enquanto a Polícia Militar sai às ruas para reprimi-los. No âmbito federal, compete à PF investigar, mas não há polícia ostensiva. A nova PRF cumpriria essa função e teria jurisdição ampliada. Atuaria em portos, aeroportos e ferrovias, não só em estradas. De acordo com o ministro, as mercadorias criminosas, como drogas, circulam por todos os meios de transporte, daí ser preciso ir atrás onde estiverem. No ano passado, a PRF fez apreensão recorde de drogas nas rodovias. Foram 850 toneladas, das quais 60% no Paraná e Mato Grosso do Sul, estados de maior fronteira com o Paraguai.
Em novembro de 2023, o governo colocou as Forças Armadas para patrulhar portos e aeroportos em busca de drogas, em uma operação do tipo GLO que durou até junho de 2024. A “PM federal” faria esse trabalho, caso já existisse. Seria empregada também em calamidades públicas e desastres naturais, como aquelas vistas nas enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul em 2024. E teria defendido a Esplanada dos Ministérios no levante bolsonarista de 8 de janeiro de 2023, no lugar da PM do Distrito Federal. Essa PM, aliás, é bastante bolsonarizada. Sua cúpula, por ocasião do 8 de janeiro de 2023, será julgada no Supremo Tribunal Federal em breve. A Corte pediu, em dezembro, aos advogados dos oito réus que apresentem seus últimos argumentos de defesa.
A PRF é outra força bolsonarizada. A corporação que matou um homem de 38 anos, Genivaldo de Jesus, em maio de 2022, em Sergipe, em uma “câmara de gás” durante uma abordagem, atirou na cabeça de uma jovem de 26, Juliane Leite Rangel, em 24 de dezembro no Rio de Janeiro. Juliane está internado em estado grave. Sobre esse episódio, o chefe da PRF no Rio, Vitor Almada, diz ter havido um equívoco dos agentes na abordagem. Eles alegam, conforme Almada, terem ouvido sons de disparo ao se aproximarem do carro do pai de Juliane e por isso atiraram na direção do veículo. Foram afastados das atividades e estão na mira da corregedoria. No caso da morte de Genivaldo, os três policiais envolvidos foram condenados, em dezembro, por um júri popular. Paulo Rodolpho Lima Nascimento a 28 anos por homicídio e William de Barros Noia e Kleber Nascimento Freitas, a 23 anos, por tortura seguida de morte.
Uma das propostas é transformar a Polícia Rodoviária Federal em uma espécie de “PM” da União
E os policiais rodoviários federais que tentaram atrapalhar o voto do eleitor de Lula no Nordeste no segundo turno da eleição de 2022, serão julgados? Nos últimos dias, a PF incriminou mais quatro deles, todos ocupantes de cargos importantes na PRF no governo passado. De modo inusual, a corporação fez 2,1 mil operações em estradas do Nordeste entre 28 e 30 de outubro daquele ano. O objetivo, não declarado, seria atrapalhar o fluxo do eleitorado lulista. Por esse mesmo motivo, o chefe da tropa rodoviária na época, Silvinei Vasques, ficou preso em caráter preventivo por um ano, até agosto de 2024, e foi incriminado pela PF. Na avaliação da Polícia Federal, a atitude da PRF na eleição compõe a trama golpista contra o resultado das urnas. A Procuradoria-Geral da República ainda tem de decidir se levará Vasques e o quarteto ao banco dos réus.
O ministro da Justiça quer ampliar ainda o alcance da PF. Inserir na Constituição a responsabilidade de os federais combaterem crimes ambientais, algo que na prática já fazem, e milícias, uma novidade. Milícia é crime tipificado no Código Penal desde 2012. Custa de 4 a 8 anos de cadeia. É montada em geral por PMs. O estado do Rio de Janeiro é, provavelmente, o maior centro miliciano da República. Lá é o berço político do clã Bolsonaro, família que defendia as milícias até o capitão da PM Adriano da Nóbrega, assassinado na Bahia em 2020, tornar-se um personagem incômodo.
Em 2023, milicianos e traficantes controlavam fisicamente 18% da região metropolitana do Rio, o dobro do tamanho de 2008. Metade desse território está sob domínio do Comando Vermelho. De 2008 para cá, o naco do tráfico cresceu 89% e o das milícias, 204%. Os dados constam da versão 2024 do “Mapa dos Grupos Armados”, feito periodicamente pela Universidade Federal Fluminense e o Instituto Fogo Cruzado. Os autores identificaram que a PM do Rio participa de mais conflitos armados em área de tráfico do que de milícia. Dúvida: seria uma forma de destronar rivais para tomar o lugar?
Enfrentar o controle territorial de facções criminosas e milícias está nos planos do Ministério da Justiça. A pasta pretende tirar do papel, até o fim do semestre, um projeto piloto em uma cidade pequena do Nordeste, cujo nome ainda é mantido em sigilo (era para ser na Bahia, mas será em outro estado). A ideia é mesclar o uso da força na expulsão de criminosos, num primeiro momento, com a oferta de espaços de convivência que contenham oportunidades de emprego, empreendedorismo e educação, em um segundo instante. “A ideia principal é substituir o ciclo econômico do crime pelo ciclo econômico do Estado”, afirmou ao site de CartaCapital Mário Sarrubbo, secretário de Segurança Pública do Ministério da Justiça.
O desenho lembra o projeto das UPPs, levado adiante pelo estado do Rio em 2008, em que unidades policiais eram instaladas em favelas para expulsar facções criminosas e abrir espaço à oferta de serviços públicos. A experiência das UPPs deixou um saldo negativo de violência policial, algo que o projeto piloto de agora tentará evitar. Segundo Sarrubbo, a tomada do território pela polícia precisar ser realizada com baixa letalidade.
O Rio é uma prioridade de retomada do controle territorial exercido por facções. O estado é palco de confrontos frequentes entre a polícia e o tráfico. A reunião de Lula e Lewandowski com governadores em outubro tinha ocorrido uma semana depois de o governador fluminense, Cláudio Castro, fazer um apelo público para que Brasília o socorresse. No dia em que o ministro da Justiça enviou ao Planalto a última versão do plano de segurança pública, 15 de janeiro, houve um fato cinematográfico, mais um, na capital carioca. Um blindado da PM tentou subir uma viela durante uma operação no Complexo da Maré. O chamado “caveirão” derrapou numa ladeira, graças ao óleo jogado no chão. Ideia do Comando Vermelho.
Um projeto piloto vai testar a capacidade de as forças públicas retomarem áreas controladas pelas milícias e pelo crime organizado
O CV é uma das 88 facções criminosas identificadas entre 2022 e 2024 pelo Ministério da Justiça, segundo um relatório de novembro da Secretaria Nacional de Políticas Penais. Atuam nas cadeias 98% delas e nas ruas, 96%. Duas são multinacionais, graças aos negócios com drogas: o PCC, de São Paulo, e o CV. Serão atingidas de alguma forma pela guerra às drogas decretada por Donald Trump ao tomar posse na Casa Branca, em 20 de janeiro? A propósito, na eleição norte-americana, Trump havia saído publicamente em defesa da legalização do uso recreativo de maconha no estado da Flórida.
A nacionalização e a internacionalização do crime são razões para Lewandowski pregar outro modelo de segurança pública, no qual Brasília tenha protagonismo. “Há um consenso, é evidente que a criminalidade se nacionalizou e até se internacionalizou, se articulou de um modo muito mais desafiador, muito mais profundo”, diz Soares. A guerra às drogas, lembra, fracassou nos Estados Unidos no passado e, no Brasil, é causa do avanço das facções, que recrutam “soldados” nos presídios cheios de jovens pegos pela PM com pequenas quantidades de drogas. A PM, comenta o antropólogo, só pode prender em flagrante, e não há lei mais fácil de ser usada para mostrar serviço do que a Lei de Drogas, de 2006. O Brasil deveria discutir a descriminalização dessas substâncias, mas não há condições políticas, dado o conservadorismo do Congresso, segundo Soares. Vide a reação parlamentar ao julgamento do Supremo que tende a descriminalizar posse e porte de pequenas quantidades de maconha.
A população carcerária brasileira é de 650 mil, conforme o Conselho Nacional de Justiça. É a terceira maior do mundo, atrás de EUA e China. O Brasil possui a quinta maior população do planeta, o que significa uma desproporção de encarcerados. Lewandowski concorda que o encarceramento massivo alimenta as facções. Tem trabalhado com o Supremo para levar adiante o Pena Justa, um programa aprovado em dezembro pelo CNJ para, em suma, deixar na cadeia quem de fato merece.
Na batalha contra as facções, o Ministério da Justiça aposta, desde Flávio Dino, antecessor de Lewandowski, em inteligência e cerco econômico. Uma das portarias de 17 de janeiro assinada pelo atual titular da pasta cria um núcleo estratégico de combate ao crime organizado. Proposta do diretor da PF, Andrei Rodrigues. O núcleo será formado por repartições da pasta da Justiça. Terá a missão de mapear as organizações criminosas, como elas se estruturam e ganham dinheiro, estudar formas de confiscar bens e descapitalizá-las. O grupo fará reuniões mensais e adotará um plano anual de ação. “Estrangulamento financeiro das organizações criminosas”, afirmou o ministro ao assinar a portaria.
Ao promover um trabalho integrado de alguns órgãos, a portaria tira do papel um dos pilares da PEC da Segurança Pública. Outras duas portarias de 17 de janeiro dão concretude a um segundo pilar: a função federal de coordenar e definir estratégias e procedimentos. Elas estabelecem regras para o uso da força pelas polícias. O objetivo é conter os abusos das PMs, como os de dois casos assustadores de dezembro em São Paulo. O do manobrista de 25 anos atirado de uma ponte de 3 metros pelo soldado Luan Felipe Alves Pereira, preso por tentativa de homicídio. E o do jovem de 24 anos baleado à queima-roupa enquanto filmava uma abordagem policial. “O governo de São Paulo perdeu o comando da tropa”, diz Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que menciona ainda Rio e Bahia como estados em situação crítica.
As portarias estabelecem uma espécie de escala progressiva para o uso da força policial. Arma de fogo só pode ser utilizada em casos bem graves e específicos. Spray de pimenta e arma de choque devem ser opções preferenciais. O Ministério da Justiça investiu 120 milhões de reais para comprar 249 mil sprays e 22 mil armas de choque, os tasers. Quantidades capazes de suprir de 50% a 70% das necessidades atuais. Mas só vai distribuí-los aos estados que toparem cumprir as regras da portaria. O mesmo vale para o financiamento da compra de câmeras para fardas de PMs. O governador paulista, Tarcísio de Freitas, havia prometido na eleição acabar com tais câmeras, mas desistiu, após o episódio do homem atirado da ponte. Admitiu publicamente estar errado. Seu governo levou adiante, porém, uma licitação para comprar câmeras mais baratas, que não filmam o tempo todo, só quando acionadas. Se quiser comprar o equipamento que grava o tempo todo e precisar de dinheiro federal, terá de aceitar as regras das portarias.
Os despachos baseiam-se em uma lei de 2014, a 13.060, segundo a qual não é legítimo atirar em um fugitivo ou em um veículo que fuja de bloqueio, a menos que em ambos os casos haja risco para a vida dos policiais envolvidos. A lei nasceu de um projeto apresentado em 2005 pelo então senador Marcelo Crivella, prefeito do Rio de 2017 a 2020. Em 23 de dezembro de 2024, Lula e Lewandowski assinaram um decreto para detalhar o espírito da lei, que respaldou as recentes portarias. Tanto no decreto quanto na portaria, está expresso que arma de fogo só deve ser utilizada pela polícia em último caso. Os governadores reclamaram. Freitas, Castro e Zema querem sua revogação. Caiado, o mais vocal deles, chamou de “presente de Natal” para o crime organizado.
O Fórum Brasileiro estima que a polícia mate cerca de 6 mil cidadãos por ano, 13% do total de assassinatos de 2022 e 2023 apurados pela entidade, 47 mil e 46 mil, respectivamente. Os números do Ministério da Justiça são diferentes: 42 mil e 40 mil. Em 2024, a pasta calcula 38 mil casos. A discrepância poderia acabar, caso houvesse uma política nacional de segurança pública coordenada por Brasília, com regras padronizadas para todos os estados. Um País que não sabe ao certo quantos assassinatos ocorrem por ano é sinal de um modelo falido que precisa, mesmo, de uma mudança profunda. •
Publicado na edição n° 1346 de CartaCapital, em 29 de janeiro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A urgência de Lewandowski’