As recentes discussões sobre a privatização da gestão escolar têm revelado um dos maiores retrocessos ideológicos e políticos da área educacional brasileira. Não é de hoje que o empresariado vem trocando a defesa de um estado mínimo por uma nova estratégia que também garante o lucro de seus negócios: a captura do Estado.
Isso fica evidente no setor educacional, quando gestores permitem que fundações participem diretamente da nomeação de secretários, quando não da imposição de livros ou compra de equipamentos. Disfarçada de inovação, essa política é mais do que uma simples terceirização; é a apropriação de recursos e dados sensíveis da população para beneficiar grandes grupos do setor, minando o conceito de gestão pública, com consequências que precisam ser urgentemente analisadas.
Tomemos o exemplo de Minas Gerais. Todos sabemos que, em qualquer lugar do mundo, a exploração de informações confidenciais da população por empresas privadas é um ato, no mínimo, anticompetitivo. Mas nesse estado, durante a pandemia, a gestão privatizada acessou dados de professores e alunos sob o pretexto de distribuir materiais didáticos de baixa qualidade, para que as informações alimentassem um mailing de futuros consumidores de pacotes tecnológicos. Só por esse ato a educação pública já se converte em uma ferramenta para o lucro, desvirtuando seu papel social e comprometendo sua função pública.
Outro exemplo da privatização disfarçada está na desumanização do ambiente escolar promovida por esses modelos de gestão “inovadores”. A fragmentação do papel do diretor escolar — separando a gestão administrativa da função pedagógica — pode comprometer seriamente a qualidade do ensino público. Gestores privatizados veem a escola como uma corporação, ignorando as complexidades da formação humana e o impacto direto das condições administrativas no desempenho pedagógico.
Pesquisa realizada pelo Instituto Cultiva com os gestores da rede municipal de São Paulo revelou que 90% dos professores trabalham sob condições de saúde precárias, muitas vezes com febre ou dor de cabeça, temendo que uma licença médica prejudique sua progressão na carreira. Essas condições desumanas são ignoradas pelos gestores privatizados, cujo foco é meramente administrativo e baseado em metas, como o índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb).
Este indicador, aliás, merece uma reflexão à parte. Ao estabelecer padrões que favorecem a gestão por resultados, o exame desconsidera as especificidades dos alunos. Essa abordagem é o oposto do que defendia Paulo Freire, que pregava uma educação voltada à realidade e à humanização. Sob o paradigma do Ideb, o foco deixou de ser o desenvolvimento integral dos alunos para se transformar em um ranking de melhores e piores escolas – e até alunos, classificados pelas estatísticas – alimentando a competição neoliberal. O pior é que os resultados gerados pelo Ideb são usados como justificativa para a contratação de gestores privados, consolidando esses monopólios de grupos e fundações educacionais.
Além de enfraquecer a gestão pública, a privatização também destrói a dimensão social do ambiente escolar. Diretores de escolas públicas deveriam atuar como líderes comunitários, fortalecendo o vínculo entre escola e famílias. Já os gestores privatizados nem sonham em fazer esse papel, pois enquanto estão focados nas metas, desenvolvem tarefas administrativas sem considerar as demandas sociais.
Experiências como o programa Comunidades Educadoras, desenvolvido pelo Instituto Cultiva, vão na contramão deste modelo neoliberal. Nesse programa, um articulador ou articuladora comunitário visita às famílias dos alunos para identificar as condições de estudantes com dificuldades de aprendizagem. Afinal, por trás de uma nota baixa, alto número de faltas ou episódios de disciplina, pode haver questões como fome, abuso sexual, falta de estrutura mínima para estudar em casa, problemas de saúde mental e outras realidades que demandam uma intervenção de outros agentes públicos e apoio comunitário.
A cidade de Contagem, no entanto, registra uma exceção do que ocorre na maioria dos municípios mineiros, por conta da implantação do Comunidades Educadoras que modificou o comportamento dos alunos. Estudantes considerados apáticos passaram a se interessar mais pelas aulas, melhorando significativamente seu desempenho. Isso evidencia que o cuidado integral, e não o simples reforço escolar, é o caminho para melhorar o desempenho acadêmico. No entanto, gestores privatizados não estão preparados para lidar com essas questões, pois seu foco está limitado a indicadores quantitativos.
A privatização da gestão escolar não é apenas uma questão econômica ou administrativa. É preciso que essa mazela seja observada pela perspectiva de uma disputa ideológica que hoje afronta a democracia no Brasil. Ao permitir que fundações ligadas a grupos empresariais da educação ditem as regras da gestão pública, o País reduz o ensino a uma lógica de mercado que desconsidera suas múltiplas dimensões humanas e sociais. A sociedade brasileira precisa estar atenta a essa ameaça, reafirmando a escola pública de qualidade como um direito universal que visa a transformação social, a inclusão e o fortalecimento da cidadania.