Passadas as eleições municipais, dois grandes acontecimentos políticos, após as eleições, revelam a nova configuração da luta de classes no Brasil e os desafios enfrentados pela esquerda.
O primeiro marco ocorreu em novembro de 2024, com a mobilização contra a escala 6×1, liderada pelo recém-eleito vereador do PSOL no Rio de Janeiro, Rick Azevedo, fundador do movimento Vida Além do Trabalho (VAT). A campanha trouxe à tona o debate sobre a superexploração no capitalismo digital, ganhando grande visibilidade graças a um abaixo-assinado com milhões de assinaturas.
Nacionalmente, a deputada federal Erika Hilton apresentou uma PEC sobre o tema, conseguindo apoio de parlamentares de diferentes partidos. A pressão popular colocou a direita na defensiva, obrigando alguns quadros históricos a apoiar a pauta. Outros, como Nikolas Ferreira (PL-MG), enfrentaram duras críticas por se oporem ao movimento.
O segundo episódio ocorreu recentemente, quando o governo Lula foi obrigado a recuar diante de uma norma da Receita Federal sobre o Pix. Editada em setembro de 2024, a medida previa maior fiscalização sobre movimentações financeiras digitais, incluindo contas com transações acima de 5 mil reais. Apesar de seu objetivo de combater grandes sonegadores, a mudança gerou apreensão em trabalhadores informais e pequenos empreendedores, principais usuários do Pix.
A onda de desinformação virou um tsunami no início do ano, quando a medida entrou em vigor. O governo Lula enfrentou essa batalha de modo burocrático, buscando ‘esclarecer’ que não haveria cobrança de impostos. O problema, nesse caso, é que a luta estava muito além da questão dos impostos, afetando profundamente a dinâmica de trabalho de milhões de brasileiras e brasileiros. Depois de 15 dias nas cordas, o governo recuou. O ápice foi o vídeo de Nikolas Ferreira, com mais de 320 milhões de visualizações.
O que levou à vitória da extrema-direita nessa disputa não foi apenas a fake news sobre a cobrança de imposto, mas a associação de uma medida do governo a um suposto ataque direto da esquerda aos ganhos dos trabalhadores autônomos, informais ou empreendedores com CNPJ. Esse ataque, segundo a narrativa, não estaria no imposto em si, mas na fiscalização.
O ponto central é a forma como esses trabalhadores gerenciam suas rendas. A maioria das transações é feita via Pix, mas, em um cenário de trabalho informal ou pejotizado, mediado por plataformas digitais ou dinâmicas cotidianas, o fluxo financeiro é irregular, diferente da estabilidade típica do assalariamento tradicional.
Nas praias do Rio de Janeiro, vendedores de mate e biscoito de polvilho realizam quase todas as vendas via Pix, mas frequentemente utilizam contas de familiares, como esposas ou irmãs, que administram melhor o dinheiro — e que, por sua vez, têm suas próprias rendas entrando na mesma conta. Em Cajazeiras, periferia de Salvador, um salão de beleza centraliza pagamentos de várias profissionais no Pix da dona do estabelecimento, que funciona na própria casa. Já em Belém, um taxista utiliza o Pix da filha para evitar roubos ou sequestros-relâmpago. No entanto, essa filha, que é personal trainer, também registra movimentações sazonais em sua conta, especialmente no verão.
Todas essas pessoas se viram ameaçadas a explicar movimentações de tipo que nada tem de sonegação, mas representam a forma desregulada como a renda do trabalho hoje é gerada. O medo de ser incluído na malha fina encontrou eco em uma faixa da população já refratária ao governo, afetada pela alta nos preços dos alimentos e pertencente a uma renda (entre 2 e 10 salários mínimos) que não se sente contemplada pelos programas sociais.
Nesse contexto, tratar esse medo apenas como consequência de fake news é ineficaz. Falta ao governo e à esquerda um projeto consistente para enfrentar a dinâmica atual da luta de classes. Mobilizações como o fim da escala 6 x 1 são importantes, mas insuficientes. É necessário avançar com propostas que garantam direitos e proteção social para essa parcela da classe trabalhadora.