A exportação de automóveis e a desdolarização do comércio internacional
por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva
Agradeço as sugestões preciosas do Prof. Luís Gonzaga Belluzzo para esta matéria.
Não é primeira vez que esta coluna toca no assunto do financiamento direto ao consumidor estrangeiro para às exportações de bens duráveis, dando-lhes exatamente as mesmas condições que o consumidor brasileiro obtém aqui. Como daquela vez, esta matéria baseia-se nos automóveis porque são os itens de produção em massa mais dependentes de financiamento. Raros são os negócios fechados à vista no ramo, predominando os consórcios, a alienação fiduciária, o leasing e, mais recentemente, os contratos de assinatura. O modelo pode ser estendido a quaisquer bens duráveis a serem vendidos no exterior.
Hoje, quando um consumidor peruano adquire um automóvel fabricado no Brasil, obtém o financiamento internamente, dependendo da oferta local de crédito, o que pode reduzir prazos e elevar juros. No Brasil, não é raro atingirem-se os oitenta e quatro meses sem necessidade de fiador, desde que o valor financiado seja inferior a 50% do preço do bem, condições inexistentes em economias menos desenvolvidas como as de nossos vizinhos na américa Latina.
Ademais, suprir de crédito toda a cadeia até o consumidor final é a função de um sistema financeiro maduro, minimizando a dependência do uso de capital próprio. Hoje, os incentivos creditícios às exportações vão pouco das antecipações dos contratos de câmbio, deixando de financiar os próximos passos na cadeia de consumo.
A volta ao tema deve-se à tentativa de desdolarização da economia mundial promovida pelos BRICS. De fato, as transações em dólares vêm caindo ano a ano no comércio internacional, enquanto as reservas em dólares reduziram-se de 95% para 78% desde a crise de 2008. É claro que as bolhas estouradas criam desconfiança, mas a questão vai muito além.
O sequestro de ativos contra o Irã, a Venezuela, bem como o bloqueio a Cuba são como assombrações que pairam sobre as cabeças dos governantes que temem desagradar aos Estados Unidos, visando a desenvolver seus países. Em casos extremos, como a expulsão da Rússia do sistema Swift, a hegemonia do dólar atribui a um só país o status de árbitro do mundo, começando e terminando guerras conforme seus interesses.
Pensando bem, esse movimento já era esperado quando o euro veio a substituir os eurodólares. É que, a partir dos anos 1960, quando a Europa já estava reconstruída e sua economia passou a florescer, a quantidade de dólares circulando no Velho Mundo superou o mesmo montante nos Estados Unidos. Mais tarde, com o anúncio de que o dólar não teria mais conversão automática em ouro, somando-se a alta do petróleo, os Estados Unidos conseguiram manter sua hegemonia monetária impondo que as transações envolvendo o ouro negro só se fizessem na sua moeda.
Esperava-se que isso mudasse com a chegada do Euro e que o poder de Tio Sam decaísse. Foi uma decepção porque os Estados Unidos anularam, via acordos militares, a derrocada de seu poder sobre a moeda, coisa que se repete com o lema de Trump: “Let’s Make America Great Again” (“Vamos tornar a América grande novamente”, em tradução). Assim, somando-se a desconfiança acerca da política dos EUA ao grito de independência dos BRICS que possuem mais da metade do PIB mundial em paridade do poder de compra, tem-se todas as condições para transformar o comércio internacional de hegemônico em compartilhado no que tange aos aspectos monetários.
É momento para o Brasil dar um passo nessa direção. O país atravessa um período em que, apesar dos ataques especulativos, detém abundantes reservas em dólares que reduzem a avidez pela entrada especulativa de capital, ou seja, podemos exportar em reais sem que a balança comercial em dólares seja criticamente afetada. É então que cabe a pergunta: por que exportar em reais abrindo mão da entrada de dólares que trazem os componentes para os produtos a serem exportados?
De fato, se o Brasil receber somente reais por produtos de baixo índice de nacionalização, o prejuízo na balança comercial em dólares tenderia a ser significativo, mas não necessariamente maléfico frente aos benefícios obtidos pelos ganhos de escala. Em 2013, nossa indústria entregou 3,8 milhões de veículos e, no fundo do vale, em 2020, não ultrapassou os 1,8 milhões, quantidade digna dos anos 1980.
A recuperação tem ficado muito aquém do esperado, fechando o ano de 2024 com somente 2,5 milhões. Esse período de baixa provocou uma debandada de fábricas como Ford e Mercedes. Simultaneamente, há uma concentração de empresas chinesas que veem o Brasil como um Hub possível, seja pelo tamanho de seu mercado interno, seja por possuir fronteiras secas com trezes países.
Esses ganhos podem viabilizar a internalização dos componentes, mitigando quaisquer eventuais perdas com o não uso da moeda hegemônica nas transações internacionais a médio prazo. Afinal, desde o Inovar-Auto que o índice de nacionalização equivale aos tempos anteriores à introdução da indústria de automóveis.
Essa política de financiamento de varejo pode dar ganho de escala ao sistema bancário brasileiro, um dos mais avançados do mundo, criando uma integração via convênio com os bancos locais. É de se supor que o país de destino seja induzido a manter reservas em reais porque, em o automóvel brasileiro sando da concessionaria já financiado por um banco brasileiro em reais, caberá ao sistema bancário local operar o câmbio para que as parcelas sejam quitadas em reais no Brasil.
Para isso funcionar, há duas possibilidades. A primeira seria preciso que o país de destino exportasse ao Brasil recebendo em reais, tornando-se fornecedor preferencial. A segundo é usar o mercado arbitral. Nesse caso, o país de destino receberia dólares do Brasil e faria com eles a compra de reais nele mesmo ou em um terceiro país, consoante a melhor taxa resultante.
Também caberia ao convênio interbancário a execução do devedor em caso de inadimplência, ficando a garantia secundária de crédito por conta do BNDES. O cavalo está passando encilhado à nossa porta, é só montar com a coragem necessária às represálias dos Estados Unidos, haja vista que Trump ameaça com as profundas do inferno a quem ousar fazer negócios internacionais fora das garras do dólar.
Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou o mestrado na PUC, pós graduou-se em Economia Internacional na International Afairs da Columbia University e é doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Depois de aposentado como professor universitário, atua como coordenador do NAPP Economia da Fundação Perseu Abramo, como colaborador em diversas publicações, além de manter-se como consultor em agronegócios. Foi reconhecido como ativista pelos direitos da pessoa com deficiência ao participar do GT de Direitos Humanos no governo de transição.
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