A carta aberta encaminhada pelo Banco Central ao Ministério da Fazenda — um dos poucos instrumentos públicos de prestação de contas da autoridade monetária independente aos poderes constituídos e à sociedade — procura explicar o estouro da meta inflacionária em 2024, mas é um documento essencialmente polêmico e contraditório, suscitando muitas controvérsias.

No diagnóstico principal está dito: “A inflação em 2024 ficou acima do intervalo de tolerância em decorrência do ritmo forte de crescimento da atividade econômica, da depreciação cambial e de fatores climáticos, em contexto de expectativas de inflação desancoradas e inércia da inflação do ano anterior.”

Ou seja, o elemento transversal do diagnóstico, presente em todos os segmentos, seria o forte crescimento da economia e o elemento diferencial, os choques específicos, quando na verdade a hierarquia deveria ser a oposta. A inflação em 2024 moveu-se sobretudo por choques de preços, enquanto o crescimento da economia permitiu para alguns setores mais competitivos uma recuperação de margens e contribuição acessória à inflação por conta de mudança de preços relativos.

Uma primeira evidencia da afirmação acima vem da comparação do IPCA cheio com os núcleos. Em 2024, todos os núcleos têm um valor inferior ao do índice cheio e estão dentro do intervalo da meta de inflação. O diferencial de aumento dos preços nos vários segmentos também constitui um questionamento do diagnóstico. Afinal, alimentação no domicílio cresce quase o dobro do IPCA, já os bens industriais, a metade, enquanto serviços e administrados atêm-se à média. O que os dados indicam: uma maior contribuição ao IPCA dos itens sujeitos a choques de preços. A trajetória dos preços industriais e, parcialmente, a dos serviços, como veremos a seguir, indicam relevância lateral da demanda agregada na formação do IPCA.

A alimentação no domicílio sofreu choques significativos e sucessivos: seca, ciclo da pecuária e aumento internacional de preços, permeados pela desvalorização do real. Os bens industriais também foram objeto de choque de preços por conta da desvalorização cambial, mas atenuados pelo choque reverso dos preços de petróleo e derivados. Por sua vez, como esta desvalorização ocorreu de forma mais intensa nos últimos meses do ano, seu efeito sobre esses preços só se manifestou a partir de então. Por fim, nos serviços, a demanda exerceu de fato maior influência. Contudo, cabe anotar aqui a diversidade do setor e o fato de não só a demanda, mas também as estruturas de mercado e os preços administrados determinarem a sua dinâmica.

A carta do BC usa um argumento ad hoc para explicar o fato de o índice de preços dos serviços não ter crescido ainda mais: o choque negativo das passagens aéreas. A explicação é pobre mesmo nos termos da metodologia do Banco Central, que separa os serviços sensíveis à ociosidade, ou seja, as variações na demanda agregada, daqueles sensíveis à inercia, vale dizer, os administrados ou indexados. Ao longo do ano, houve no setor choques negativos e positivos, desconectados da evolução da demanda agregada, associados à indexação ou preços administrados e seus lobbies, além de aumentos de preços decorrentes da administração das margens de lucro de segmentos oligopolizados.

Assim, o maior vilão da inflação, de acordo com o mercado e o BC, têm sido os preços de serviços subjacentes, ou seja, aquelas sensíveis ao crescimento da demanda — e o segmento dos serviços prestados às famílias seria um paradigma dessa estrutura. Nesse caso, cabe uma observação pontual: até que ponto o segmento não está passando para adiante o significativo aumento do choque de custos, vale dizer, da inflação de alimentos e combustíveis, cujo aumento em 2024 foi respectivamente de 8% e de 10%?

Essas questões nos levam de volta à análise da carta do BC sobre os determinantes da inflação em 2024, mais precisamente sobre os fatores que explicam os desvios da meta. Como se vê no gráfico abaixo, o choque da desvalorização cambial e a inércia explicam 2/3 do desvio da meta. Deixando de lado as expectativas enquanto elemento de explicação da inflação corrente – um assunto para iniciados – o hiato de produto teria contribuído com apenas 1/4 do desvio da meta. Ora, não há como não concluir que os choques de preços e a inércia são os principais determinantes da inflação brasileira em 2024 e, quiçá, de maneira permanente. Quanto ao hiato, cabem algumas considerações.

Comecemos pela afirmação: “O crescimento da atividade econômica, que surpreendeu para cima ao longo do ano, foi forte e também contribuiu para a inflação acima do intervalo de tolerância”. Cabe discutir se de fato este crescimento surpreendente foi forte ou excessivo. A economia brasileira apresentou no triênio 2022/2024 um crescimento médio de 3%, após longo período de recessões e estagnação desde 2015, e o crescimento de 2024 está estimado entre 3% e 3,5%. Cabe perguntar se, após esse largo período de baixo dinamismo, crescer ao redor de 3% a.a. constitui uma ameaça a estabilidade de preços. Se a resposta for positiva, estaríamos diante de um trade-off particularmente perverso para um país com as características do Brasil. Mas o que essa postura do Banco Central revela é a prioridade exclusiva e absoluta como uma meta irrealista de inflação, mesmo às custas do crescimento econômico.

Vários dos indicadores utilizados pela ccxarta do BC para comprovar o dinamismo da economia podem ser questionados e problematizados, mas cabe chamar a atenção para alguns aspectos cruciais deixados de lado: há ou não ociosidade de “fatores de produção” na economia brasileira? O perfil do crescimento exacerba a redução da ociosidade ou a relaxa? O crescimento de rendimentos tem sido suficiente para pressionar os preços?

No que tange à ociosidade da força de trabalho, a referência à redução da taxa de desemprego para um mínimo histórico de 6,1% omite duas características essenciais: primeiro, essa taxa de desemprego se refere a uma oferta de força de trabalho distinta do pré-pandemia. Vale dizer, considerada a evolução da taxa de participação, conclui-se que cerca de 2% da força de trabalho foi retirada do mercado pelas políticas sociais e não pelo aumento do emprego; sem elas, a taxa de desemprego estaria rodando em torno de 8%. Ademais, a taxa composta de subutilização, embora com redução substantiva, se encontra no patamar de 15,2%, perfazendo um total de 16,8 milhões de pessoas disponíveis para ampliar, em graus variados, a oferta de trabalho. Isto sem incluir eventualmente cerca de dois milhões retirados do mercado pelos programas sociais.

Mas, afinal, o pretenso dinamismo do mercado de trabalho e seu impacto sobre a inflação se manifestariam por qual canal? Certamente, a elevação dos custos salariais e, sobretudo, o seu crescimento acima da produtividade deveriam ser os mecanismos essenciais de pressão sobre os preços. Uma fonte mais rigorosa do comportamento dos rendimentos é aquela do emprego formal do Caged. A esse propósito, o crescimento do salário médio real de admissão em 2024, até novembro, registrava um incremento anual de cerca de 1,5%, um número bastante moderado.

Os dados da PNAD, mesmo mais imprecisos e defasados, dão algumas informações adicionais: o rendimento médio mensal real do trabalho habitual aumentou no ano 4,3%, mas ainda está abaixo do pico do início da pandemia. No emprego formal, esse número foi de 3,8%, mas também tem valor inferior ao mesmo pico. Apenas o emprego informal mostra, além de rendimentos maiores no ano (5%), patamar acima de pico (4%). Se após quatro anos, o mesmo patamar, ou ligeiramente superior, de remuneração, pressiona as margens de lucro e os preços, é forçoso concluir que houve significativa desorganização da oferta e perda de produtividade da economia. Todavia, isso não parece plausível.

Mas, qual a implicação destes dados de rendimentos? Houve de fato pressão inflacionária decorrente dos custos do trabalho ou ganhos de margem por conta do crescimento da demanda? Do ponto de vista setorial, a dispersão é muito significativa, em particular nos serviços, com ganhos acima da média para os subsetores de comércio e de transportes e alojamento, e abaixo da média para alimentação e alojamento, informação e comunicação, e outros serviços. Assim, a diversidade de trajetórias do setor de serviços não permite uma resposta única, mas cabe ressaltar que ela deve incorporar a constatação de que houve entre julho de 2023 e julho de 2024 uma recuperação de preços relativos dos serviços, compensando perdas ocorridas entre julho de 2020 e junho de 2023, certamente pela influência do crescimento em alguns subsetores.

Voltando à questão do hiato de produto, cabe discuti-la setorialmente destacando serviços e indústria. Nos primeiros, a existência ou não de capacidade ociosa depende do ponto de referência utilizado. Se tomarmos a referência do volume produzido no pico histórico e não o volume imediatamente pré-pandemia, a inexistência de capacidade pode ser sugerida apenas nos serviços de informação e comunicação, cuja expansão é significativa, sobretudo após a pandemia, e ocorre com queda de preços relativos associado às inovações e aumento de produtividade. Todos os demais segmentos estão longe de esgotar a capacidade existente, tomando como referência os vários picos de produção prévios. Em vários casos, o “pico de produção” imediatamente antes da pandemia estava entre 10% e 20% abaixo do pico histórico. Há ainda a agregar aqui prováveis ganhos de produtividade e de aumentos de capacidade produtiva, pois esta última não depende, neste setor, de grandes investimentos.

Ainda no plano da ociosidade, o documento constata que o NUCI da FGV, em 2024, variou entre 83,4% e 81,1%, enquanto o dado da CNI esteve cerca de 3 p.p. abaixo, números que não significam esgotamento de capacidade, apenas grau elevado de utilização. Este patamar acima de 80% ocorre nos períodos nos quais a economia cresce continuamente – como entre 2003 e 2008; 2010 e 2013; 2022 e 2024 – e sua elevação é essencial para funcionar como gatilho de novos investimentos, o que vinha ocorrendo. Mas aqui cabe também alertar que a importância desse número médio deve ser matizada. Primeiro, é necessário considerar a sua dispersão. Segundo, nos segmentos em que esta utilização é mais elevada cabe verificar qual o papel das importações, ou coeficiente importado para atender a demanda doméstica. O coeficiente importado da indústria de transformação no Brasil gira em torno de 25%, sendo o dobro na indústria de média-alta tecnologia (53,6%), na qual se concentram os segmentos de bens de capital e bens de consumo durável, os líderes do crescimento em 2024.

Ainda no que tange ao hiato de produto, cabe indagar sobre o perfil do crescimento, ou seja, se a sua composição indicava ampliação ou afrouxamento deste hiato. O documento reconhece a importância e a liderança do investimento em 2024, evidente em vários indicadores. Ao longo de 2024, a indústria de bens de capital e de consumo duráveis consolida a sua liderança no crescimento industrial, deixando de lado o padrão de 2023, no qual a indústria que depende sobretudo da massa salarial, a de bens não duráveis, e a extrativa, que depende da demanda externa, haviam liderado o crescimento. Em simultâneo, e como expressão desse novo padrão, o crescimento das importações de bens industriais se acelera, refletindo o maior coeficiente importado desses segmentos nos quais predominam as atividades de média-alta tecnologia. Ora, com esse padrão de crescimento e estrutura da oferta no Brasil, o efeito prático da redução da ociosidade seria pressionar as importações destinadas ao aumento da capacidade produtiva, reduzindo — e não ampliando — o hiato de produto.

O aspecto ainda mais problemático do diagnóstico do Banco Central diz respeito ao papel que atribui, na explicação da inflação, aos fatores não diretamente ligados aos indicadores reais, mas decorrentes de expectativas e da especulação por elas desencadeada. No centro dessa questão está a desvalorização do real, que produziu um choque de preços significativo a partir de abril, intensificado em setembro. Mas, como explicar esse overshooting da taxa de câmbio? A resposta do BC: “A significativa depreciação cambial decorreu principalmente de fatores domésticos, complementada pela apreciação global do dólar norte-americano”. E, claro, nos “fatores domésticos” o responsável de sempre: os “riscos fiscais”.

O problema aqui reside em diferenciar o principal do acessório. A carta do BC apresenta os dados das variações do valor de várias moedas ante o dólar em 2024, sem o cuidado de diferenciar moedas conversíveis e inconversíveis. De qualquer modo, o movimento atinge tanto as primeiras quanto as segundas, mostrando que o movimento principal é global, ou seja, a valorização do dólar.

Por sua vez, a carta do BC deveria ter feito uma comparação mais minuciosa dos movimentos das moedas periféricas ou inconversíveis e explicar as suas diferenciações. Mesmo o índice de países emergentes do J.P. Morgan não é um bom indicador, pois mistura economias com diferentes graus de abertura financeira, riscos de país, liquidez nos mercados internacionais, importância dos mercados de derivativos. E aqui cabe lembrar: o real é a moeda mais líquida dentre as emergentes, inclusive com um amplo mercado de derivativos offshore, tornando-o mais volátil nos ciclos de liquidez.

Uma dimensão crucial para analisar a desvalorização do real é aquela da evolução do cupom cambial, ou seja, da onshore dollar rate, a qual, a partir de meados do ano, ficou acima da sua equivalente no mercado americano. Esse spread e sua persistência indicam que o mercado apostou consistentemente na desvalorização do real no segundo semestre de 2024. E a pergunta: se não havia problemas cambiais, nem na conta corrente, nem na financeira, qual a origem desta especulação? Além dos fatores estruturais como o movimento do dólar, a resposta deve considerar a própria ação do Banco Central. No plano objetivo, o BC não realizou operações expressivas, seja no mercado à vista ou no de derivativos, a pretexto de que não haveria especulação, pois a desvalorização do real estaria refletindo os fundamentos, vale dizer, “os riscos fiscais”. Mas aqui a realidade é contundente: quando decidiu agir, a partir de dezembro, derrubou expressivamente os spreads. Assim, por que não interveio antes e deixou se consolidar um ataque especulativo contra o real?

Se a carta do Banco Central fosse um instrumento verdadeiro de prestação de contas à sociedade, o seu tom deveria ser de autocrítica. No afã de pôr sob o seu controle o conjunto da política econômica, inclusive a fiscal, o Banco Central produziu, a partir de desvios menores nos indicadores econômicos — resultantes de choques de preços, melhorias na distribuição da renda e direcionamento para um perfil de crescimento fundado no investimento —  uma desestabilização radical das expectativas, pondo o governo na disjuntiva de aderir a políticas contracionistas ou arriscar uma crise de maior amplitude.

Ao permitir e sancionar a desvalorização do real ante o dólar contratou um choque de preços que fatalmente está levando e levará a inflação a níveis elevados, exigindo juros ainda mais altos, ampliação da dívida pública e redução do crescimento do PIB, do emprego e da renda.

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Last Update: 21/01/2025