Quando Nelson Rodrigues escreveu sua primeira peça de teatro tinha apenas 29 anos de idade.

Era então um jovem jornalista em início de carreira, perseguido por dificuldades financeiras, de modo que a sua aproximação com o teatro não parece sido algo premeditado. Nelson Rodrigues acreditava, então, que a sua vocação literária era o romance, mas recorreu às peças de teatro, nesse primeiro momento, com a finalidade de socorrer-se do apuro financeiro.

Tanto foi assim que, originalmente, o autor optou por escrever uma comédia, num tempo em que o teatro brasileiro se reduzia basicamente aos dramalhões, ao teatro musicado e às comédias de costumes, com uma conotação folhetinesca que remonta à história do romance brasileiro, inaugurado formalmente com “A Moreninha” (1844) de Joaquim Manuel de Macedo.

Esse projeto inicial acabou se convertendo na tragédia “A Mulher Sem Pecado” (1941), qualificada pelo crítico Sábato Magaldi, como uma das “peças psicológicas” do escritor, ao lado de outras obras qualificadas como “peças místicas” e “tragédias cariocas”.

O que era para ser uma peça de apelo comercial e popular acabou se tornando o ponto de partida de uma mudança de paradigma na dramaturgia nacional. Nela vemos de forma embrionária todos os elementos que alçariam Nelson Rodrigues à condição do criador do teatro moderno brasileiro. A história linear, com um início, meio e fim, é subvertida para traçar diferentes planos que emergem no palco, representando, ao lado dos fatos, a memórias e o inconsciente dos personagens. Utiliza-se , em determinadas passagens, o microfone para enunciar, ao lado dos diálogos, as cogitações, os pensamentos e o inconsciente dos personagens. Os temas convencionais do teatro folhetinesco são deixados de lado em detrimento de tragédias que suscitam temas tabus como incesto, o estupro, a fatalidade da infidelidade conjugal, o impulso pela morte, a loucura e o suicídio.

A primeira encenação de “A Mulher Sem Pecado” ocorreu em dezembro de 1942 no Teatro Carlos Gomes do Rio de Janeiro.

O tema central da peça é a impossibilidade da fidelidade conjugal.

O protagonista Olegário é movido por ciúmes doentio e compulsivo em relação à sua bela esposa, chamada Lídia. Cadeirante há sete meses por conta de uma doença, uma ideia fixa move o marido: saber se foi ou não traído por sua mulher, desde o seu convalescimento.

Olegário suborna pessoas para vigiar Lígia na rua. Rebela-se mesmo contra a ideia de que sua mulher já tivera outros namorados antes do casamento. Expressa em determinados momentos um ideal segundo o qual o verdadeiro amor conjugal não possa ter qualquer conotação sexual.

(E, contraditoriamente, em determinados momentos o seu ciúmes compulsivo parece ser movido por um desejo remoto de ver a sua mulher o traindo com outro homem.).

Algumas falas do protagonista são representativas dessas variações do medo da traição e do desejo pela infidelidade da “mulher sem pecado”.

– “Sabes o que eu acharia bonito, lindo num casamento? Sabes? Que o marido e a mulher, ambos, se conservassem castos, castos um para o outro, sempre, de dia e de noite. (…) Conhecer o amor, mesmo do próprio marido, é uma maldição. E aquela tem a experiência do amor deve ser arrastada pelos cabelos”.

– “A mulher bonita se satisfaria como namorada lésbica de si mesmo”

E numa cena de delírio, Olegário imagina um quarto de onde não sairiam ele, Lídia e o suposto amante, por toda a eternidade. O receio da infidelidade, nessa imagem, tem uma dimensão do absoluto, ao propor a existência atemporal (“por toda a eternidade”) do triângulo amoroso.

Olegário está no limiar entre a sanidade e a loucura. Na verdade, é a dúvida em torno da fidelidade da mulher que forja a sua própria insanidade. O próprio protagonista afirma escutar vozes e ter visões, mas, por ter consciência do seu próprio delírio, ainda não fora inteiramente aniquilada a sua lucidez. Nas suas falas, revela-se uma tensão permanente em que está sempre prestes a romper a censura do seu consciente, ao ponto de torna-lo ridículo aos olhos de Lídia, quando sugere com miudezas cenas e imagens de amantes travando relações eróticas com sua mulher.

O impacto da conduta do marido sobre Lídia dará o fim trágico da peça.

Lídia, desde a doença do marido, adquire o hábito de chamá-lo de “meu filho”. Num dado momento, instada por Olegário a beijá-lo, revela timidamente uma repugnância sexual em relação ao marido. Os acessos de raiva do protagonista, na sua permanente desconfiança da honestidade da mulher, irá levar a “mulher sem pecado” a revalidar a sua própria honestidade.

Num diálogo com mãe de Olegário, uma mulher louca que não a compreende, Lídia revela pela primeira vez o desejo de matar o marido. Ainda afirma a vontade de ser seviciada sexualmente por outro macho num lugar deserto. Confessa ter beijado um funcionário do marido. Finalmente, resolve fugir da casa do marido para viver um romance com Umberto, o chofer da casa.

Ao final da peça, descobrimos que a paralisia de Olegário foi forjada com a finalidade exclusiva de testar a fidelidade de Lídia. Logo após revelar a verdade da doença, o marido recebe a carta da esposa lhe noticiando a sua fuga com o amante. Dentro do estilo típico das tragédias cênicas, Olegário termina mantando-se com um tiro na cabeça.

Brasil e Teatro Moderno

A importância do escritor Nelson Rodrigues no Teatro Brasileiro reside no fato de ter inaugurado e consolidado o modernismo na dramaturgia nacional. Até então, o teatro brasileiro se baseava na comédia de costumes, nos dramalhões e o no teatro musicado herdado do século XIX. Com a nova dramaturgia do escritor carioca, temos uma expressão mais consistente da psicologia humana, das contradições entre o desejo erótico e as regras sociais, e das frequentes transgressões morais de personagens que deixam de ser caricaturas superficiais para terem uma feição radical do homem comum, com todas as suas contradições.

A partir de “A Mulher Sem Pecado” (1942) e principalmente “Vestido de Noiva” (1943), temos um novo tipo de arte, com enfoque nos conflitos psicológicos, sem prejuízo do sarcasmo e da ironia, em que os personagens são frequentemente levados a transgredir os limites da ordem e da moral, particularmente no campo do erotismo. Enquanto antes o teatro era basicamente uma fonte de divertimento, agora passa a ter uma intencionalidade muito mais ampla, para expressar, na forma de arte, os desejos e perversões humanas ocultas e mascaradas pelas conveniências sociais. Abre-se também espaço para a experimentação formal, para o irreal e o fantástico dentro das peças, e para a exploração de novos temas, inclusive temas tabus, particularmente o da tragédia humana decorrente do impulso sexual que leva à degradação moral.

Os elementos essenciais da dramaturgia de Nelson Rodrigues podem ser resumidos, de fato, na expressão “a vida como ela é”. Temas como a virgindade violada, os ciúmes, o incesto, a prostituição, a corrupção política e a canalhice humana denotam uma arte que busca de forma exacerbada a veracidade: a verdade se revela em situações limite, como na descoberta da traição, nos instantes que antecedem a morte ou nos pactos de mortes entre amantes, neste último caso, respondendo ao reconhecimento de que em vida não é possível manter a real autenticidade, ante as proibições convencionadas socialmente. Há sempre nas peças certos momentos de explosão dos desejos reprimidos como o evento culminante de revelação das razões subjacentes às atitudes de cada personagem. A verdade oculta se revela nas situações mais dramáticas.

Outro aspecto característico das peças de teatro do nosso escritor é a sua vinculação com o período histórico do Brasil de meados do século XX. Suas principais peças foram escritas entre a década de 1940/1960, momento em que o país vivia um rápido processo de urbanização, industrialização, transição demográfica do campo para a cidade e, de forma correspondente, uma veloz mudança de padrões comportamentais. O jornalismo de massas, o rádio popular, a expansão do futebol, a criação de Brasília e a nova faceta mais urbana da sociedade brasileira encontram densa expressão do teatro de Nelson Rodrigues, nitidamente pelo fato de o próprio autor ter atuado com destaque na imprensa carioca, de onde retira inspiração para consecução de suas “tragédias cariocas”.

Na conjuntura internacional, as peças estão situadas no contexto do pós II Guerra Mundial e da Guerra Fria, quando exsurge um sentimento de urgência relacionado aos riscos de um conflito nuclear generalizado que colocasse o mundo a baixo. Essa percepção de que o mundo poderia acabar dentro de quinze minutos é explorada como justificativa para a exposição das paixões sexuais, dentro da lógica de que “tudo é permitido” quando “tudo está prestes a acabar”.

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Last Update: 21/01/2025