Contorcionismo Mental

por Fernando Nogueira da Costa

Segundo Thomas Piketty, em seu livro “Uma Breve História da Igualdade”, lançado em 2021, a construção do Estado não envolve apenas o desenvolvimento da capacidade fiscal ou militar, mas também visões de mundo, ideologias, identidades, instituições, línguas e “comunidades imaginadas”. Essas construções estatais foram controladas pelas classes dominantes, buscando dominar o restante do mundo de maneira política, colonial, religiosa ou comercial.

No entanto, as classes subalternas e as lutas sociais passaram a desempenhar um papel crescente a partir do fim do século XVIII. O Estado não é inerentemente igualitário ou desigualitário. Depende de quem o controla e para qual finalidade.

Para Piketty, a história do capitalismo e do desenvolvimento econômico está intrinsecamente ligada à história do Estado e do poder. Em consequência, é profundamente política e ideológica.

Cada construção estatal, seja do Reino Unido e França, no século XVIII, seja da China, Estados Unidos, Índia ou União Europeia, no século XXI, envolve processos sócio-históricos específicos, identidades e lutas particulares. É crucial analisar a gênese dos dispositivos institucionais, como os adotados pelo socialismo de mercado chinês, capazes de ser duradouros, embora opressivos.

As receitas fiscais dos estados europeus aumentaram muito entre 1500 e 1850, impulsionadas principalmente por gastos militares e soberanos, enquanto o controle permanecia sob as elites. Entre 1914 e 1980, os gastos sociais se tornaram dominantes, quando o Estado socialdemocrata passou a atender às classes médias e de baixa renda, sob a influência de movimentos políticos representativos do sindicalismo e outras organizações populares.

O primeiro grande salto do Estado tributário (1700-1850) foi impulsionado por gastos militares e soberanos, controlados pelas elites, enquanto o segundo (1914-1980) priorizou gastos sociais em benefício das classes médias e populares. Essa mudança marca uma revolução antropológica, por causa do Estado escapar do controle exclusivo das classes dominantes, pela primeira vez na história, ao se consagrar o sufrágio universal, a democracia parlamentar, os processos eleitorais e a alternância política.

Observa-se cotidianamente no jornalismo brasileiro a resistência da classe dominante, inclusive da mídia, ao governo de origem trabalhista eleito por cinco vezes no Brasil. Em uma foi golpeado e em outra sofreu nova tentativa de golpe, desta vez militar e com planejamento de assassinatos dos eleitos e do juiz.

Depois de uma longa temporada da ladainha neoliberal diária, para pressionar o Banco Central do Brasil a elevar a taxa de juro básica de referência, os economistas lobistas – em busca de influenciar o poder decisório para atuar de acordo com os interesses dos grupos contratantes deles – alteraram o discurso. Fizeram um contorcionismo mental para justificar a elevação do déficit nominal brasileiro.

O argumento passou a ser os gastos públicos serem a principal causa da inflação. Em 2024, o IPCA registrou 4,83%, abaixo da média histórica de 6,13% dos últimos 27 anos, uma habitual média mensal de 0,5%. Mas ficou acima do “teto” irrealista diante o contexto internacional de valorização do dólar.

Houve uma reviravolta de postura. Antes, os lobistas pressionavam o aumento do juro. Depois, por ele aumentar o déficit nominal e os encargos financeiros da dívida pública, detonaram um terrorismo midiático a respeito da sua elevação.

Sem respeito às inteligências dos leitores, os lobistas fazem um contorcionismo teórico para separar as contas públicas e a atuação do Banco Central no arbítrio da taxa de juros. A discrepância entre o déficit público primário (apenas 0,1% do PIB), o qual exclui os juros da dívida pública, e o déficit nominal, o qual soma os juros e atingiu -7,8% do PIB, em 2024, é factualmente explicada pela política monetária arbitrária na fixação de juros disparatados em termos mundiais.

O Brasil mantém sua 2ª colocação no ranking dos países com o maior juro real do mundo, atrás apenas da Turquia. Tem impactos diretos no custo da dívida pública. Os encargos financeiros aumentam muito o déficit nominal, sem necessariamente ter uma relação direta com o nível de gastos primários ou a inflação corrente.

Ao argumentar os gastos públicos serem a principal causa de uma inflação relativamente baixa, os lobistas ignoram a complexidade do sistema econômico e a interdependência entre política monetária e fiscal. Pior ainda, tal abordagem omite o fato de a política de juros altos ser, em si, a causa primária do crescimento da dívida pública e do déficit nominal.

Os seguintes fatores levaram à inflação acima da meta em 2024: a alta do dólar com um impacto 1,21 ponto percentual (pp), a inércia inflacionária 0,52 pp, o sobreaquecimento da economia 0,49 pp, a seca (elevação dos os preços dos alimentos) 0,38 pp, e a “desancoragem das expectativas” 0,30 pp.

Os gastos públicos podem, em contextos específicos, ter efeitos expansionistas sobre a economia, mas associar diretamente esses gastos à inflação atual (abaixo da média histórica) desconsidera outros fatores conjunturais, como a capacidade ociosa da economia sem pressão de demanda agregada e o cenário de “inflação importada”, causada pela especulação com o dólar. Os lobistas de instituições financeiras “compradas em dólar” alardeavam “o risco fiscal provocar o risco cambial com a fuga de capitais e a depreciação da moeda nacional”. Era uma profecia autorrealizável.

Na briga contra os números dos atuais bons fundamentos macroeconômicos da economia brasileira – taxa de crescimento do PIB na média internacional, baixa taxa de desocupação em termos históricos, o segundo maior saldo comercial da história e a taxa de inflação relativamente baixa –, os lobistas culpam os gastos públicos pela “inflação acima do teto”. Ignorar a contribuição dos juros fixados arbitrariamente no déficit nominal requer uma simplificação indevida do problema, sem adotar uma análise sistêmica e holística do fenômeno.

O jornalismo econômico escandaliza com a manchete “déficit nominal do Brasil dispara e se distancia de países emergentes” (Valor, 15/01/25). Ao afirmar “o Brasil terá um dos maiores déficits nominais do mundo em 2024 e 2025, em um nível bem acima de outras economias emergentes”, paradoxalmente, desrespeita a inteligência do leitor da tabela apresentada na própria reportagem.

Alardeia o déficit nominal esperado pelo BTG para o Brasil ser de -7,8% do PIB em 2024 e de -8,6% em 2025, atrás apenas da Bolívia. Ora, deveria destacar ser abaixo do -8,8% de 2023 e considerar o Brasil como um dos grandes países emergentes, acompanhado da Índia (também -7,8%), Estados Unidos (-7,6%) e China (-7,4%).

Está no ranking dos dez maiores PIB, população e território do mundo. O que, de fato, destoa é sua taxa de juro básica de 12,25% aa, diante 4,5% aa nos Estados Unidos, 3,1% aa na China, 3,15% aa na Zona Euro, 0,25% aa no Japão, 6,5% aa na Índia. Na relação entre taxa de inflação e taxa de juro, seu múltiplo (2,5 vezes) supera todos os demais, exceto a China, um caso “fora-da-curva”, cujo múltiplo é de 31 vezes: 3,1% de juro e 0,1% de inflação!

Nesse ranking, talvez a particularidade brasileira seja a taxa de juro evitar o temor de fuga de capitais para o dólar a la vizinha Argentina. O câmbio brasileiro encerrou 2024 com uma desvalorização de 21,82% ante o dólar Ptax, a taxa de referência. Das 20 principais moedas no mundo, o real mais se desvalorizou perante o dólar.

Culpa da relação dívida/PIB? No ranking das 10 maiores economias, menor relação diante a brasileira (78%) só tem a Alemanha (62,9%). Todas as demais – EUA 122,3%, China 83,4%, Japão 255,2%, Índia 81,6%, Reino Unido 97,6%, França 110,6%, Itália 134,6%, Canadá 107,5% – superam largamente a brasileira.

O argumento de economistas lobistas é não ser possível “culpar” os juros elevados pelo déficit nominal alto e crescente no Brasil. “Uma coisa retroalimenta a outra. Se tem dívida alta, é natural ser um dos motivos para pagar juro mais alto. Isso vale para qualquer ente, pessoa física, jurídica ou setor público. Se tem dívida maior, tem mais risco”, diz um contorcionista de banco. Ora, a dívida pública brasileira é predominantemente em moeda nacional, ou seja, não dolarizada, com risco soberano e sem risco de calote! O temor é sim a elevação da tributação progressiva e o fim da isenção fiscal sobre dividendos, privilégio dos ricos.

O papel do Estado endividado na melhoria das condições de vida da maioria da população se deu, segundo Piketty, através do fortalecimento do Estado social e dos gastos sociais. As duas guerras mundiais e a crise de 1929 alteraram as relações de força entre trabalho e capital, empoderando as classes médias e populares. Esse novo contexto político, com a ascensão de partidos trabalhistas e socialdemocratas, possibilitou a implementação de políticas sociais e fiscais com vistas a reduzir a desigualdade e melhorar as condições de vida da maioria da população. Agora, o Brasil busca tirar esse atraso histórico – e enfrenta reações.


Fernando Nogueira da Costa – Professor Titular do IE-UNICAMP. Baixe seus livros digitais em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: [email protected]

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Last Update: 20/01/2025