Nos próximos dias, a corregedoria da Polícia Militar deverá chegar aos dois criminosos que estariam por trás do assassinato do delator Vinícius Lopes Gritzbach, assassinado em pleno aeroporto de Guarulhos.
Há enorme probabilidade de que eles sejam mortos em confronto, em um autêntico processo de queima de arquivos
Até agora foram presos 15 PMs, todos sob a guarda da corregedoria da própria PM. Se houver envolvimento de alguma alta patente ligada ao governo do Estado, ou ao Secretário de Segurança Guilherme Muraro Derrite, certamente o controle da investigação pela própria PM seria a maneira mais adequada de direcionar os depoimentos.
O que se pode afirmar, com segurança, é que os mandantes não são os chefões do Primeiro Comando da Capital (PCC), mas, muito provavelmente, dissidências vinculadas a PMs, lutando pelo controle do tráfico em São Paulo.
Vamos a algumas peças do xadrez para entender a história.
Peça 1 – os outsiders do PCC
Antônio Vinícius Lopes Gritzbach – o delator assassinado no Aeroporto de Guarulhos – ingressou no crime organizado por meio de atividades no setor imobiliário e de criptomoedas, estabelecendo parcerias com membros do PCC. Ele intermediou a compra de imóveis para integrantes da facção e indicou “laranjas” para as escrituras, facilitando a lavagem de dinheiro.
Acusado de ordenar a morte de dois meliantes, Gritzbach foi assassinado. Estão envolvidos na operação 16 PMs e também Policiais Civis.
Segundo O Globo:
“Oito dias antes de morrer, o empresário denunciou para a Corregedoria que estava sendo alvo de extorsão por parte de agentes ligados ao Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), ao Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), ao 24º Distrito Policial (Ermelino Matarazzo) e ao 30º DP (Tatuapé)”.
“Gritzbach também relatou que um integrante do PCC era dono de um banco digital em sociedade com um policial civil do Deic e que dois membros do PCC pagaram cada um R$ 5 milhões em dinheiro aos policiais do DHPP para livrá-los da acusação de sequestro de Gritzbach quando eles o cobraram pelas mortes de Cara Preta e Sem Sangue”.
Importante: seu assassinato se deu apenas 8 dias após seu depoimentos à corregedoria, no qual anunciou que revelaria o nome de outros PMs.
Portanto, tanto na ascensão como na morte de Griztach há o envolvimento direto de PMs e policiais civis. O que esses dados indicam: um envolvimento direto da polícia nas disputas pelo controle das drogas, já que no PCC vigora o que se poderia chamar de “pax in bello”, uma paz na guerra.
E aí, entramos em um terreno surpreendente, no qual o PCC é fonte de equilíbrio, nas regiões onde está instalado, e a PM e a PC instrumentos de disputa.
Peça 2 – a paz do PCC
Certa vez peguei um Uber dirigido por uma mocinha, bem nova. Na conversa, disse-me que morava na zona sul e fazia faculdade à noite. Perguntei se sua família não se preocupava com sua segurança, especialmente à noite. Respondeu-me que a região era absolutamente segura, garantida pelo PCC. Qualquer assalto ao comércio, abuso às mulheres, era imediatamente reprimido. Havia um tribunal aberto, no qual os acusados podiam se defender. No final, vinha a sentença – que poderia ser até a pena de morte.
Relato similar me foi contado por um antigo motorista. O que garantia a paz e segurança em sua região era uma espécie de vingador, que investia contra qualquer pessoa que ousasse ameaçar a paz interna. A situação só se complicava quando aparecia a polícia e levava o vingador preso.
Peça 3 – o modelo PCC
Há dois tipos de pesquisadores: os que só conseguem aceitar a realidade depois que é encapsulada em alguma tese acadêmica de terceiros; e os que se valem da observação empírica para definir teses a serem trabalhadas por ferramentas estatísticas.
Bruno Pantaleão de Oliveira é do segundo grupo. No ano passado, apresentou a tese de doutorado “Descanse o seu gatilho: a hegemonia dos mercados ilegais e seus dividendos de paz”, sobre a maneira como o PCC organizou territórios dominados por ele.
A tese foi apresentada na Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo.
O trabalho parte de um estudo do Regional Economic Outlook, do Fundo Monetário Internacional, que constatou que aumento de 1% na taxa de homicídios de um país latino-americano está estatisticamente associado a uma redução de 0,3 pp no crescimento do PIB.
Em seus estudos nas regiões dominadas pelo PCC, Pantaleão constatou uma grande redução nos homicídios – devido à consolidação do crime organizado e à implementação de instituições informais -, que contribuiu para o desenvolvimento de áreas locais, permitindo acumulação de capital e aumento no número de empresas formais. Adicionalmente, há um aumento na participação das mulheres na força de trabalho.
Ele concentra sua análise em duas comunidades, Paraisópolis e Heliópolis. Valeu-se do Google para localizar em Paraisópolis 20 pizzarias, 18 hamburguerias, várias churrascarias, lojas de sushi, restaurantes de yakissoba, atendendo a uma população de 50 mil pessoas.
Heliópolis tem uma população de 100 mil pessoas. Ao contrário de Paraisópolis, não há vizinhos ricos, mas o comércio também é abundante: 18 pizzarias, 20 hamburguerias, um cinema, dois locais para shows e festas infantis, academias, lojas, um hospital e uma unidade básica de saúde. Nas proximidades, há uma grande loja de atacarejo, vários postos de gasolina, oficinas mecânicas, supermercados, academias, farmácias, escolas particulares e agências bancárias.
Em Paraisópolis há também a Favela G10, grupo empreendedor que visa incluir moradores de favela como consumidores. Visa estimular as pessoas a investir e criar empregos dentro das favelas já que a maioria dos moradores inseridos no mercado formal precisa pegar em média 2 a 3 transportes para chegar ao local de trabalho. Em Heliópolis há a Favela Holdings, com objetivo semelhante.
Ambos sofrem os preconceitos do Estado, que oferece serviços muito abaixo da média, não oferecem segurança, não dão atenção às conexões de água, esgoto, eletricidade, iluminação pública e entrega de correspondência.
Peça 4 – As condições para o empreendedorismo
Explica Pantaleão:
O que é prescrito, com base na literatura de criação de estado, para que empreendedores tivessem sucesso:
- O desenvolvimento de uma presença forte e permanente do estado por meio da melhoria das instituições;
- garantir que a extração criminosa seja limitada ,
- que os membros de gangues evitem interromper negócios legítimos,
- que os direitos de propriedade sejam aplicados
- e que os empreendedores tenham acesso a serviços como infraestrutura, justiça e transporte.
Nas regiões dominadas por ele, quem dá essa garantia não é o Estado: é o PCC.
Interessa ao PCC a paz interna, primeiro, porque ali moram membros e familiares. Depois, porque não interessa chamar a atenção da polícia atrapalhando seu negócio principal: a venda de drogas. Por isso garantem proteção às lojas e famílias locais sem cobrar por isso (ao contrário das milícias).
Chegou-se a esse estágio devido “à arquitetura informal do PCC, sua estabilidade de regras e seu papel de mediação de conflitos em grandes reinos da cidade de São Paulo”, atuando como uma instituição informal substituta do estado.
A Governança Criminal garante melhor ambiente de negócios e promove o desenvolvimento econômico.
Peça 5 – o código penal do PCC
Como explica o autor:
“O controle hegemônico sobre mercados criminosos não implica em tirar um pedaço de tudo, mas fornecer governança a todos os participantes. Um executor do PCC, um disciplinador, passa os dias no telefone, indo de um debate para o outro, lidando com questões que variam de máquinas caça-níqueis roubadas, assassinatos não sancionados e pequenos atos de roubo cometidos por viciados em drogas (Biondi 2016). A lei do crime não pode parar e deve ser aplicada a todos.
Estupradores e pedófilos devem morrer, atitudes isoladas devem receber punição exemplar, moradores devem ter suas brigas resolvidas para evitar a entrada de policiais. Maridos violentos devem ser expulsos da comunidade, pois brigas domésticas atraem a presença policial em todas as horas do dia e da noite. Ao promover sua própria marca de justiça – uma que seja razoável e baseada em regras – e contrastá-la com a violência indiscriminada frequente e prisões promovidas por policiais dentro das favelas, a governança criminal hegemônica adiciona uma dose de estabilidade e previsibilidade para aqueles que seguem a lei e aqueles que não seguem”.
Sobre as formas de legitimação das suas leis:
“As regras do PCC são sofisticadas e conhecidas para evitar a violência, usar delitos e mobilizar a tomada de decisões colegiadas para garantir que todos percebam as decisões como justas”.
O trabalho traz várias estatísticas mostrando a redução dos homicídios nas favelas, o aumento de empregos e de empresas.
Outro ponto relevante do modelo, que explica bem porque a onda de crimes atual é fruto da parceria de PMs com outsiders, para ocupar o espaço do PCC, são as formas de ascensão dentro da organização:
“Os criminosos não são capazes de matar seu caminho até o topo dentro da própria organização: os incentivos para as lutas internas de gangues diminuem quando a legitimidade se torna mais importante e os direitos de propriedade são aplicados”.
Todas essas práticas de governança, de impor regras para os criminosos e para a comunidade, são conduzidas por membros nomeados como “disciplinadores” de uma determinada área. Eles não são pagos por esse trabalho, embora possam recuperar despesas diretas.
E aí entra um ponto que explica a segurança da jovem motorista do Uber: há um ganho de emprego das mulheres porque comunidades mais seguras são mecanismo que permite a inserção no mercado de pessoas mais suscetíveis à violência
Conclui ele:
“O que aconteceu em São Paulo, (…), é uma situação em que aquelas disputas criminais que não podem ser mediadas pelo estado deixam de acontecer. Nesse caso, à medida que o Primeiro Comando da Capital se expande e estabelece uma presença hegemônica no mundo do crime, o estado começa a observar taxas de homicídios muito “razoáveis” (por exemplo: em linha com cidades como Assunção, Buenos Aires, Montevidéu e grandes áreas urbanas densas da América do Norte).
Essa presença hegemônica não é instituída por meio do controle de mercados ilegais, mas por meio da constituição de Instituições Informais que são capazes de resolver disputas entre criminosos e criar um efeito dissuasor forte o suficiente (muito maior do que aquele criado pelos detetives de homicídios e tribunais de São Paulo (Willis 2015)) para impedir que criminosos tomem “atitudes isoladas” (decisões individuais), que é o quadro mais comum para violência não sancionada sob as instituições do PCC”.
Peça 6 – a política corrompendo o crime
Aí se entra em um terreno complicado. Até algum tempo atrás, havia disputas sangrentas em organizações sem comando definido, como o Comando Vermelho, ou em disputas entre facções. Em São Paulo havia redução de crimes nas zonas controladas pelo PCC.
A partir da ascensão dos Bolsonaro, o quadro mudou. Os Bolsonaro passam a ver o crime organizado como parte integrante de seu poder.
Já em 2008, Bolsonaro foi um crítico da CPI das Milícias, na Assembleia Legislativa do Rio. Defendeu a existências de milícias armadas e pagas. Em 2007, o recém eleito Flávio Bolsonaro fez uma defesa candente das milícias:
“Venho falar sobre as milícias, assunto tão noticiado pela imprensa”, disse. “Não se pode, simplesmente, estigmatizar as milícias, em especial os policiais envolvidos nesse novo tipo de policiamento entre aspas. A milícia nada mais é do que um conjunto de policiais, militares ou não, regidos por uma certa hierarquia e disciplina, buscando, sem dúvida, expurgar do seio da comunidade o que há de pior: os criminosos”.
Em 2018, Bolsonaro voltou a elogiar milicianos em entrevista à Jovem Pan.
É por isso que há ex-PMs e milicianos por trás da morte de Marielle e Gritzbach. E é por aí que se entende o apego do governador Tarcísio de Freitas ao seu Secretário de Segurança Derrite. E a preocupação em acionar a corregedoria só quando havia risco concreto de apuração de crimes pela Polícia Federal.
A saída, obviamente, não é a troca do Estado pelo crime organizado, mas Judiciário, Polícia e, especialmente, os Ministérios Públicos, entenderam a relevância da luta contra o crime organizado, mas para instituir a cidadania, e não substituir pelo crime do Estado desorganizado.
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