No último dia 16, sem grande alarde, foi lançada a “Carta em defesa da Democracia e da República”, documento que inaugura movimento chamado “vamos em frente” (ou “juntos em frente”, segundo o título da carta), patrocinado nominalmente pelo Instituto Novos Paradigmas (INP) e pelo movimento Derrubando Muros, “entre outros”, como nos diz a própria página na qual o documento encontra-se publicado no sítio do INP. A repercussão foi tão pequena que sequer a encontramos em portais de esquerda como TV247 e Brasil de Fato. O próprio movimento nos aponta para duas matérias, uma publicada na Folha de S. Paulo, outra n’O Globo, indicando parecer positivo da burguesia em relação à carta. A manchete da Folha é certamente favorável à política atual da burguesia: “Ex-ministros de Lula, FHC e Dilma veem ‘extorsão’ do Congresso e se mobilizam para 2026”. É uma ode à “frente ampla” que supostamente sustenta o atual governo de Lula.

Quem assina?

Antes de nos dedicarmos à crítica do texto, vamos aos signatários. Em primeiro lugar aparece Tarso Genro, ex-ministro da Justiça, durante o segundo mandato de Lula, e ex-governador do Rio Grande do Sul pelo PT. Seu nome é natural, dado que é presidente do Conselho do INP. Em segundo está o tucano Aloysio Nunes Ferreira, ex-ministro de Relações Exteriores do governo golpista de Michel Temer, e também ex-ministro da Justiça durante o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso. Petistas e tucanos — golpistas — abraçados, tal qual o presidente e seu vice-presidente.

Na sequência temos José César Martins, do “Derrubando Muros”, um empresário, investidor (banqueiro) que em teoria se opõe ao bolsonarismo. Os muros a serem derrubados provavelmente são aqueles entre esquerda, a base petista, e direita, o bolsonarismo. É literalmente um movimento pró-Terceira Via, dado que sua fundação se deu ao redor de ato realizado em setembro de 2021 para promoção de Ciro Gomes (PDT), que dividiu palanque com João Doria (PSDB), Luiz Henrique Mandetta (DEM) e a atual ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet (MDB). Como não poderia deixar de ser diferente, Walfrido Warde, o advogado que preside o infame Instituto para a Reforma de Relações entre Estado e Empresa (IREE), também assina a carta.

A lista de signatários é acrescida de Beto Albuquerque, representando o PSB; Cristóvão Buarque, ex-governador de Brasília; Marta Suplicy, ex-prefeita de São Paulo e vice de Guilherme Boulos, derrotado em outubro do ano passado; e Alberto Cantalice, dirigente petista que compete com Tarso Genro pelo cargo honorário de “mais tucano dos petistas”, mas perde pela falta de requinte. José Dirceu, suposto grande estrategista do PT, também assina a lista ao lado de outras celebridades da cultura e da política nacional.

Essa composição exala os mesmos odores do grupo que integra o Poder Executivo. Odores cada vez menos agradáveis tendo em vista a debacle do pix na última semana. Não por acaso, a carta foi publicada um dia após a reação em torno do vídeo do deputado bolsonarista Nicolas Ferreira. Qual é a essência deste bloco? Uma Frente Ampla em que políticos falidos e sem voto se valem dos votos e da legitimidade da esquerda, de Lula e do PT para implementarem suas políticas extremamente impopulares.

“Juntos em frente”

Nos atemos aos signatários não para diminuir a carta, mas para estabelecer uma relação entre seu conteúdo político, o grupo de signatários e as desventuras do governo Lula. Sem mais, vamos ao texto. Agradecemos aos autores pela brevidade, que nos permite reprodução integral nesta polêmica:

 

CARTA EM DEFESA DA DEMOCRACIA E DA REPÚBLICA: JUNTOS EM FRENTE

 

Esta carta é dirigida a todos os que professam a democracia e defendem a paz e a ordem republicana do Estado Social da Constituição de 1988. E é um manifesto em defesa do Brasil, como país soberano, do trabalho como valor fundamental, da construção da nação como comunidade de destino, do empreendedorismo inovador — em todos os níveis — baseado na inteligência cientifica universal.

As guerras das grandes potências militares com seus interesses estratégicos estão transformando o planeta inteiro num catastrófico teatro de ações políticas e operações militares, que já ameaçam as condições naturais mínimas para a sobrevivência dos humanos e a soberania das nações. As guerras, em geral, são propagadoras da barbárie e alimentadoras do autoritarismo e das ditaduras.

Esta Carta propõe que aqui no Brasil, a partir da sociedade civil, propaguemos um amplo movimento cívico descentralizado, com iniciativas locais, regionais, nacional — idênticas ou análogas — para defender o futuro da democracia no país. A herança do governo anterior, com um déficit fiscal de 795 bilhões, desmanche de instituições e políticas públicas, negação retrógrada da inteligência científica universal, propagação da violência miliciana e o culto da morte — erigidos como política de Segurança Pública — também são um legado perverso do qual devemos defender o país.

Afirmamos, primeiro, que a solução é mais democracia, não menos; e que isso só será possível com o suporte de um campo político unificado, capaz de mostrar diferenças: entre democracia e ditadura; entre frentes políticas eleitorais sem princípios e frentes eleitorais baseadas em princípios mínimos, tanto voltados para a restauração da dignidade da política, como da preservação dos Poderes da República.

Esta Carta, portanto, propõe que é possível estabelecer uma comunicação entre as múltiplas visões democráticas — nos Estados e na própria União — para buscar pontos de unidade em direção a novas Frentes políticas, com suas especificidades regionais, já no 1⁠º turno ou, alternativamente, no 2⁠º turno das eleições de 2026, pautando-se pelos seguintes objetivos:

  1. Bloquear a influência no Congresso Nacional, de bancadas oligárquicas e fisiológicas, que se dedicam a extorquir, para proveito próprio, os orçamentos públicos, assim subvertendo a relação institucional entre os poderes da União;
  2. Defesa dos princípios do Estado de Direito da Constituição de 88 e da preservação dos seus poderes constitucionais;
  3. Defesa de uma política interna e externa, que unifique o país na transição climática, para uma potente política de prevenção de catástrofes e de redução das desigualdades sociais e regionais;
  4. Compromisso de não firmar alianças com setores de partidos ou partidos, da direita autoritária e da extrema direita, ou de quaisquer organizações partidárias que proponham ditaduras de qualquer natureza nos processos eleitorais em curso no ano vindouro.

Estas novas frentes denunciarão tentativas golpistas, defenderão a identidade laica do Estado, defenderão a profissionalização das Forças Armadas e seus proponentes envidarão esforços desde agora — autônomos, comuns ou associados em rede — para proporcionar múltiplas manifestações e novos manifestos pautados pelos objetivos ora concertados.

Antes só…

Já diz o velho ditado. A começar pelo título que também dá nome ao movimento, como não lembrar do clássico lavajatista “nem de esquerda, nem de direita, para frente”? O texto começa com a típica demagogia burguesa, que já não surte mais efeito em tempos de grande polarização nacional e mundial. “Paz”? “Ordem republicana”? “Democracia”? Tudo isso, aos olhos práticos do povo brasileiro, é sinônimo de fome, desemprego, inflação. No âmbito político, sinônimo de perseguição judicial, primeiro dos petistas (inclusive Dirceu, que assina a carta) e Lula, agora do Bolsonaro e seus apoiadores. Ao final do parágrafo somos agraciados com um belo exemplo de idealismo burguês do mais baixo nível, a defesa da “inteligência científica universal”.

Na sequência, ao falar das “grandes potências militares”, somos obrigados aqui a imaginar que a Rússia, que se defende de uma ofensiva imperialista na Ucrânia, está no mesmo patamar de seus inimigos, nominadamente a OTAN. Não há dúvidas que guerras, quaisquer que sejam, têm consequências devastadoras, mas a paz proposta pela carta parece ser a paz imperialista, isto é, a ditadura dos monopólios sobre o resto do mundo. Qual seria o “autoritarismo” e as “ditaduras” que são alimentadas pelas guerras? Em mais um parágrafo vago, somos obrigados a imaginar que a carta adere à tese imperialista do combate “democrático” às autocracias russa, chinesa, norte-coreana, etc.

Na sequência, a carta prega a austeridade fiscal, em crítica direta às políticas eleitoreiras praticadas pelo governo Bolsonaro, mas que, de qualquer maneira, colocaram algum dinheiro na mão de pessoas pobres para as quais esse recurso foi certamente essencial. Tão essencial, que foi mantido pelo atual governo. Novamente voltamos à “inteligência científica universal”, uma espécie de religião secular aparentemente, um reflexo pseudo esquerdista das igrejas evangélicas que apoiam o bolsonarismo.

Para se criar a frente almejada pelo texto, que apresente a diferença entre “democracia e ditadura”, antes de tudo, seria necessário parar de recorrer à perseguição judicial como meio de luta política. O Supremo Tribunal Federal, que persegue Bolsonaro como perseguiu Lula e outros petistas, é uma instituição desmanchada — para usarmos os termos da carta —, mas não ficou assim por conta do bolsonarismo ou de qualquer governo que o tenha antecedido. Sempre foi assim. E como falar em princípios quando nas eleições municipais o PL de Bolsonaro esteve em alianças com todos os partidos com bancada no Congresso nacional, do PT ao PSDB.

Os quatro pontos da carta, que supostamente defende a democracia, o republicanismo, a constituição de 88, são uma contradição em termos. O governo oligárquico e o fisiologismo estão previstos no regime político nascido da manobra política que conteve as massas ao final da ditadura militar brasileira. Como defender o Estado de Direito — uma verdadeira ficção desde a remoção de Lula nas urnas em 2018 — e os poderes constitucionais e se opor ao fisiologismo que esse regime gera por projeto. A crise climática provavelmente diz respeito a tão falada “inteligência científica universal”, cifra para a política do imperialismo para condenar o Brasil ao atraso tecnológico, à exportação de bens de baixo valor agregado.

Antes de encerrar, o texto trágico ainda sinaliza aos militares golpistas brasileiros ao falar na defesa da “profissionalização das Forças Armadas”, como se já não o fosse e como se isso não fosse um problema. Um país livre tem seu povo armado, treinado e pronto para defender sua soberania, como nossos vizinhos na República Bolivariana da Venezuela.

“Juntos em frente” para não dizer que não tem mérito, é uma iniciativa que coloca às claras todos os problemas da atual estratégia política da direção petista. A Frente Ampla contra o bolsonarismo nada mais é que a oferta da credibilidade do PT e de Lula com a classe operária brasileira a uma política desprezível apagada do mapa político em 2018, pela polarização entre esquerda e extrema-direita. Apresentar-se ao lado de golpistas com um programa burguês que acena ao imperialismo e à burguesia nacional desgasta o governo perante as massas e desmoraliza não apenas o PT, mas a esquerda de conjunto. Só podemos esperar que o movimento criado por Tarso Genro seja apenas um conjunto de ideias mirabolantes na cabeça de ideólogos pequeno-burgueses. Se essa for a estratégia petista para 2026, devemos nos preparar para o pior.

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 20/01/2025