Donald Trump só vai sentar-se na cadeira do Salão Oval da Casa Branca na segunda-feira 20, mas os norte-americanos e o resto do mundo têm tido amostras diárias do que o republicano e sua trupe de bilionários no poder promete fazer. Da deportação em massa a alterações significativas no mapa-múndi, a caquistocracia, o governo dos despreparados e inescrupulosos, segundo definição da revista britânica The Economist, chega em Washington com “sangue nos olhos”. Segundo a mídia dos Estados Unidos, o futuro presidente, prestes a iniciar o segundo mandato, prepara a edição de mais de cem ordens executivas, a serem anunciadas nos primeiros dias de mandato, em uma estratégia chamada de “choque e pavor”. O alvo primordial das medidas, dizem aliados de Trump, serão os imigrantes ilegais. Agentes federais teriam mais liberdade para prender até quem não tem antecedentes criminais e militares seriam enviados imediatamente à fronteira do México para retomar a construção do muro, iniciado pelo magnata e interrompido pela administração de Joe Biden, que separa os dois países.
Embora o futuro presidente dos EUA tenha sido peremptório e taxativo em suas declarações desde a vitória nas urnas em novembro passado, nem mesmo correligionários do partido acreditam no cumprimento das inúmeras promessas de pré e pós-campanha. O controle da Câmara e do Senado dará folga à Casa Branca ao menos nos dois primeiros anos de mandato, antes das eleições de meio-termo que quase sempre modificam a correlação de forças entre republicanos e democratas. Ainda assim, várias das propostas dependem de um apoio incontestável no Congresso e tendem a terminar na Justiça – neste caso, Trump também tem a seu favor uma maioria folgada de juízes reacionários na Corte Suprema.
A seguir, CartaCapital analisa cinco dos principais temas do novo mandato do magnata, tanto em políticas internas quanto nas relações internacionais. As instituições norte-americanas serão testadas como nunca. E a paciência do planeta, idem.
Deportações em massa
Uma das promessas mais frequentes da campanha, a expulsão de imigrantes ilegais ocupa o topo das prioridades. Trump garantiu que, no primeiro dia de governo, vai dar início ao maior programa de deportações da história dos Estados Unidos. Ao longo da corrida presidencial, o republicano atacou de forma despudorada os migrantes. Chamou-os de bandidos e assassinos, alegou que eram responsáveis por levar doenças ao país e de “enfraquecer o sangue” dos compatriotas e fartou-se com a fake news de que haitianos comiam cães e gatos de estimação na cidade de Springfield, Ohio.
De acordo com o Conselho Americano de Imigração, o conjunto de propostas sugeridas pelo novo governo afetaria quase 80% dos imigrantes sem documentação que vivem nos Estados Unidos há mais de 15 anos. A intenção de suspender a cidadania de filhos de imigrantes nascidos no país fatalmente seria judicializada, pois a 14ª Emenda da Constituição, ratificada em 1868 após a Guerra Civil, prevê a concessão a “todas as pessoas nascidas ou naturalizadas” no território norte-americano. O republicano insiste. “Temos de acabar com isso. É ridículo”, disse em dezembro, durante uma entrevista ao Meet the Press, programa do canal NBC.
Impor tarifas de importação ao resto do mundo é uma das obsessões dos republicanos. A maioria dos eleitores reprova
Tom Homan, futuro “czar da fronteira” e conselheiro sênior sobre deportações em massa, deixou claro que “qualquer um ilegalmente no país corre risco de prisão”. A meta, afirmou, é intensificar o trabalho conjunto das agências que cuidam das fronteiras e das forças de segurança estaduais e municipais para prender e deportar um número maior de imigrantes de forma mais rápida e eficaz. Além disso, o processo de remoção acelerada, que prevê a expulsão de detidos sem uma audiência judicial, também seria ampliado.
Um estudo realizado pelo conselho sobre uma operação dessa magnitude indica um custo de ao menos 88 bilhões de dólares por ano para expulsar 1 milhão de ilegais a cada 12 meses. O novo presidente promete não respeitar limites, financeiros e repressivos, para cumprir a promessa. Governadores e autoridades aliados têm-se colocado à disposição para viabilizar os “campos de concentração” para onde seriam enviados os imigrantes até a conclusão do processo de deportação. Dawn Buckingham, comissária de terras do Texas, ofereceu 1,4 mil acres no estado, o equivalente a 5,7 mil metros quadrados, para a construção de um desses campos, mas o espaço seria insuficiente para dar conta das metas da Casa Branca. Para uma operação em larga escala, o US Immigration and Customs Enforcement estima a necessidade de uma área 24 vezes maior. Atualmente, o número de imigrantes sem documentos passa dos 11 milhões. A maioria trabalha em funções de baixa remuneração e sem proteção social rejeitadas pelos norte-americanos.
Guerra na Ucrânia
No fim do mandato, Biden liberou cerca de 14 bilhões de dólares à Ucrânia e autorizou o exército liderado por Volodymyr Zelensky a atacar a Rússia com mísseis de longo alcance cedidos pelos Estados Unidos. Talvez seja o canto do cisne. Trump sempre culpou o rival democrata pelo prolongamento do conflito e promete resolver a situação logo que tomar posse. O republicano tende a impor os termos exigidos por Vladimir Putin. O vice-presidente, JD Vance, sugeriu ao governo ucraniano que abrisse mão dos territórios ocupados pelos russos e desistisse de se integrar à Otan, a aliança militar do Atlântico Norte. A organização, aliás, é outro alvo do futuro presidente. Trump acha que a Europa gasta pouco na própria defesa e ameaça reduzir as contribuições de Washington à Otan.
Keith Kellogg, general nomeado para cuidar do assunto, anunciou, daquela forma rasteira típica do trumpismo, as linhas gerais de sua estratégia na região. “Diremos aos ucranianos: ‘Vocês têm de vir à mesa, e se não vierem, o apoio dos Estados Unidos vai secar’. E então diremos ao Putin: ‘a Rússia tem de vir à mesa, e se vocês não vierem daremos aos ucranianos tudo o que eles precisam para matá-los no campo’”, afirmou.
As propostas na mesa, prosseguiu Kellogg, incluem um cessar-fogo e a cessão ao Kremlin das áreas ocupadas. Em troca da desistência de integrar a Otan, Kiev receberia forças de paz ocidentais para garantir a segurança das fronteiras e evitar uma nova invasão. Os republicanos sabem que a Europa não é mais o principal território da disputa geopolítica. O eixo deslocou-se para o Oriente, em especial o Mar da China, com a qual os EUA travam uma renovada “Guerra Fria”.
Trump dá sinais de optar por uma anistia seletiva aos invasores do Capitólio
De qualquer maneira, Trump precisará convencer deputados e senadores a suspender o apoio financeiro anunciado por Biden no fim de mandato. A maioria republicana, provavelmente, não se oporia. “Está claro que o novo capítulo começa para a Europa e para o mundo inteiro em apenas 11 dias, em um momento em que temos de cooperar ainda mais, confiar ainda mais uns nos outros e alcançar resultados ainda maiores juntos”, apelou Zelensky, na quinta-feira 9, durante a 25ª reunião do Ukraine Defense Contact Group, em referência à posse do novo titular da Casa Branca. Palavras de desespero de quem acreditou na fantasia de ser um herói da liberdade contra a tirania.
Faixa de Gaza
Após quinze meses e mais de 45 mil mortos, mulheres e crianças palestinas em sua maioria, o Hamas e Israel anunciaram na quarta-feira 15, cinco dias antes da posse de Trump, um cessar-fogo. O republicano, como esperado, reivindica os louros pelo acerto, intermediado pelo emirado do Catar, embora as bases tenham sido propostas em maio do ano passado pelo seu antecessor na Casa Branca, Joe Biden. “Nós temos um acordo para os reféns no Oriente Médio. Eles serão liberados em breve”, antecipou-se o magnata em sua rede social. “Continuaremos a promover a paz por meio da força em toda a região, à medida que aproveitamos o impulso desse cessar-fogo para expandir ainda mais os Acordos Históricos de Abraão. Este é apenas o começo de grandes coisas que estão por vir para os Estados Unidos e, de fato, para o mundo.”
Não se deve descartar que o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, cujas afinidades eletivas com Trump são reconhecidamente maiores do que com Biden, apesar do apoio incondicional do democrata ao massacre levado a cabo pelas tropas israelitas em Gaza, tenha optado por dar um “presente” ao futuro presidente dos Estados Unidos. Bibi relutou no ano passado a avalizar os termos agora aceitos por seu gabinete.
Em linhas gerais, o cessar-fogo em discussão em Doha, no Catar, prevê três fases. Na primeira, com duração de 15 dias, o Hamas libertaria 33 reféns, entre mulheres, crianças, idosos e feridos. Em troca, Tel-Aviv devolveria 30 prisioneiros palestinos para cada refém civil e 50 para cada militar e permitiria a entrada de 600 caminhões por dia com comida, remédios e produtos de higiene, uma forma de amenizar os graves problemas humanitários dos confinados no enclave. A partir do 16º dia, começa a segunda fase, prevista para durar 42 dias. O grupo islâmico liberaria os reféns homens restantes por mais prisioneiros e pela retirada completa das tropas israelitas do enclave. A terceira fase, sem um prazo definido, incluiria a reconstrução e administração de Gaza e a devolução de corpos de combatentes dos dois lados. Israel rejeita a participação do Hamas em qualquer instância decisória no futuro. Para o premier Mohammad Mustafa, a Autoridade Palestina deve ser o único poder governante na região depois da retirada das tropas inimigas.
Com Trump na Casa Branca, a solução dos dois Estados, única possível para uma paz de longo prazo, tende, no entanto, a ficar para as calendas. O republicano continua a ameaçar o Hamas e os palestinos e mais de uma vez defendeu o “direito” de Israel de ocupar o terreno. “O inferno vai explodir”, declarou às vésperas do Natal, caso o Hamas não libertasse todos os reféns até a sua posse.
Protecionismo
Impor tarifas a outros países é uma das obsessões de Trump. O republicano ameaça não só a China. Canadá e México, parceiros no Nafta, Europa, Brasil e qualquer país que ouse fazer negócios em outra moeda a não ser o dólar entraram na mira. A retórica protecionista provocou um fenômeno singular. Os economistas projetam uma alta persistência da inflação caso o magnata imponha de fato tantas restrições aos produtos importados. Mais inflação obrigará o Fed, o Banco Central norte-americano, a interromper o corte nos juros. Em consequência das expectativas, houve uma corrida por títulos públicos do país no fim do ano, o que explica em parte a valorização da moeda dos EUA no mercado internacional.
Na segunda-feira 13, Trump anunciou na Truth Social a criação de uma nova agência federal, a External Revenue Service, dedicada a administrar a cobrança de tarifas das importações de serviços e produtos. “Por meio de acordos comerciais suaves e pateticamente fracos, a economia americana trouxe crescimento e prosperidade ao mundo, enquanto nos taxava”, escreveu na plataforma digital.
Os eleitores estão divididos em relação ao tema. Segundo pesquisa realizada em dezembro pela Quinnipiac University, 51% dos entrevistados se opuseram ao plano de impor novas tarifas sobre importações do México, Canadá e China, enquanto 38% apoiaram. Como a lei federal permite aos presidentes ajustarem tarifas com base em ameaças declaradas à segurança nacional e punirem países acusados de violar acordos comerciais ou de imporem regras injustas ou discriminatórias, Trump não encontraria muita resistência no Congresso ou na Justiça. O republicano promete, nos primeiros dias de governo, impor tarifas de 10% às importações de forma linear, 60% para produtos chineses, além de uma sobretaxa de 25% ao Canadá e México. Principal alvo das medidas, Pequim pede diálogo, mas ameaça retaliar da mesma maneira. É possível que o mundo vá assistir a um retrocesso nas relações comerciais.
Anistia aos condenados pelo 6 de Janeiro
O destino de quase 1,6 mil condenados pelos crimes relacionados ao ataque ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021 está nas mãos de Trump. Pesquisa realizada pelo jornal The Washington Post em parceria com a Universidade de Maryland, divulgada em dezembro, revelou que dois terços dos norte-americanos são contra a anistia aos condenados pelo ataque. Segundo fontes próximas, o futuro presidente tem avaliado o perdão com cautela, embora o apoio de sua base eleitoral à medida seja expressivo, com 60% dos republicanos e 69% dos eleitores favoráveis. A Constituição dá ao presidente o poder irrevogável de perdoar, o que inclui a suspensão das punições e a restauração dos direitos civis dos condenados, entre eles o de votar e de portar armas. Ao longo da campanha, Trump recuou da ideia de uma anistia “ampla, geral e irrestrita”. Agora, fala em indulto seletivo. “Estou inclinado a perdoar muitos deles”, afirmou. “Não posso dizer para cada um deles, porque alguns, provavelmente, perderam o controle.”
A anistia nos Estados Unidos alimenta a esperança dos bolsonaristas acusados da tentativa de golpe no Brasil e do quebra-quebra da Praça dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023. A decisão de Trump poderia, em tese, influenciar o Congresso brasileiro a aprovar uma lei semelhante. Vã esperança, tudo indica. Os ministros do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes à frente, parecem determinados a condenar os golpistas, fato inédito na história recente do País. A ver. •
Publicado na edição n° 1345 de CartaCapital, em 22 de janeiro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Sangue nos olhos’