Quando trabalhei, na juventude, no jornal Movimento, tantas vezes censurado por fazer oposição à ditadura, tive a sorte de entrevistar, junto com o colega Murilo Carvalho, um líder sindical que começava a despontar no ABC paulista. Sim, ele mesmo: o metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva.
Infelizmente, não guardei o exemplar. Aos 20 anos, a gente pensa que nada vai sumir do nosso campo de interesse. Hoje, só me lembro do quanto aquele homem de voz rouca, que perdeu um dedo em um acidente de trabalho, me impressionou.
Lula veio para São Paulo com a família em um “pau de arara”, como eram conhecidos os caminhões que transportavam retirantes nordestinos na carroceria, normalmente fugindo da seca. Foi alfabetizado em um grupo escolar em Pernambuco, mas a pobreza não permitiu que se dedicasse aos estudos. Provavelmente, aprendeu mais na “escola da vida” do que nos livros, mas concluiu um curso profissionalizante para torneiro mecânico no Senai. Tornou-se metalúrgico antes dos 20 anos.
Depois do golpe de 1964, Lula passou por várias fábricas até chegar na Aços Villares, em São Bernardo. Por coincidência, meu pai trabalhou na mesma empresa, como diretor de planejamento: cargo reservado para pessoas de uma classe social acima dos operários metalúrgicos…
Em 1969, Lula foi eleito suplente da nova diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema. Hoje, me parece que o sindicalismo era uma forma de organização dos trabalhadores em tempos de pleno emprego. Nos tempos atuais, em que máquinas inteligentes fazem o trabalho de seres humanos, imagino que a força das reivindicações trabalhistas tenha decaído muito.
Em 1975, Lula virou presidente daquele sindicato, com 92% dos votos, uma liderança quase unânime. Encabeçou greves operárias que reivindicavam aumento de salário. Participou da fundação da CUT, a Central Única dos Trabalhadores.
Por ser um sindicalista, esperávamos que Lula demonstrasse o que chamamos de “consciência de classe”. Mas, muito além disso, sua compreensão de como a máquina do capital produz desigualdade foi uma aula da qual nunca me esqueci. Só alguns anos mais tarde fui ler a obra de Karl Marx e compreendi que Lula, sem empregar esse termo, havia compreendido o conceito de mais valia: o tempo de trabalho roubado do trabalhador para assegurar o lucro do capitalista.
O Capital é um livro difícil para quem não entende de economia, mas a introdução sobre de onde vem o lucro do capitalista é claríssima. A quem não teve a oportunidade de ler, recomendo – embora os leitores de CartaCapital talvez não precisem dessa recomendação.
Em 2002, depois de três tentativas fracassadas – eta homem persistente! – foi eleito presidente do Brasil pela primeira vez. Em 1989, perdeu a eleição para (argh!) Fernando Collor. Em 1994 e 1998, disputou novamente a Presidência da República, mas nas duas vezes foi derrotado, ainda no primeiro turno, pelo tucano Fernando Henrique Cardoso. À época, alguns diziam que era a disputa entre um príncipe e um sapo barbudo…
Pois bem: em 2002, aos 57 anos, o “sapo” foi eleito presidente, com 61,27% dos votos válidos em segundo turno, superando o economista José Serra, o candidato de FHC. O metalúrgico sem curso superior soube criar caminhos para, aos poucos, tirar o Brasil do vergonhoso Mapa da Fome da ONU. Talvez a classe empresarial tenha se revoltado: com o Bolsa Família, deve ter ficado mais difícil contratar mão de obra por um salário de fome.
Assim sendo, a pretexto da suposta posse indevida de um tríplex no Guarujá, foi condenado à prisão em 2018 pelo juiz Sergio Moro, que mais tarde entraria oficialmente para a política, como ministro da Justiça de Jair Bolsonaro. Lula passou 580 dias em uma cela da Superintendência da Polícia Federal em Curitiba. Em 2021, o Supremo Tribunal Federal anulou todas as condenações resultantes da picaretagem chamada “Operação Lava Jato”.
Dois anos antes de ser condenado, e logo após ser conduzido coercitivamente para prestar um depoimento por ordem de Moro, Lula lançou uma profecia: “A partir de agora, se me prenderem, eu viro herói. Se me matarem, viro mártir. E, se me deixarem solto, viro presidente de novo”. Dito e feito: ainda que apertada, a vitória eleitoral em 2022 possibilitou ao Brasil começar a se refazer dos males causados pelo sinistro governo de Bolsonaro.
P.S.: Sou amiga e apoiadora do MST desde 2009, quando trabalhei na Escola Nacional Florestan Fernandes, em Guararema. Manifesto aqui o meu pesar e solidariedade diante dos assassinatos de Valdir Nascimento e Gleison Barbosa no assentamento Olga Benário, em Tremembé. •
Publicado na edição n° 1345 de CartaCapital, em 22 de janeiro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Lembranças com Lula’