A Spcine, empresa municipal voltada ao audiovisual, completa, em 2025, dez anos. Criada na gestão Fernando Haddad, a empresa tem atravessado diferentes administrações sem que sua existência seja colocada em xeque ou suas políticas suspensas.
No início do ano, ao ser anunciada a nova equipe do prefeito Ricardo Nunes (MDB), foi confirmado que Lyara Oliveira, produtora, professora e pesquisadora do audiovisual, seria mantida no cargo.
Lyara chegou à empresa em 2021, a convite da então presidente Viviane Ferreira, cineasta e ativista do movimento negro. Em 2024, com a saída de Viviane, foi nomeada presidente.
Nascida em Jundiaí, filha de um engenheiro e uma médica, Lyara é doutora em Meios e Processos Audiovisuais pela Escola de Comunicações e Artes da USP, foi funcionária da TV Globo e atuou na produção independente. Quando foi convidada para a Spcine, geria um fundo da Netflix voltado a profissionais do audiovisual e fazia parte do Lab Negras Narrativas, patrocinado pela Prime Video.
“Eu, até então, não tinha experiência de gestão pública. Só tinha a experiência da crítica à gestão pública”, brinca, durante a conversa com CartaCapital, na sede da empresa, no centro de São Paulo.
Parte dos produtores e realizadores da cidade tem criticado a empresa, que completa dez anos, pela ênfase excessiva nas ações afirmativas
CartaCapital: Como você recebeu a notícia de que seria mantida no cargo?
Lyara Oliveira: De forma pragmática e alegre por poder dar continuidade ao trabalho. A Spcine, ao longo desses dez anos, foi crescendo e encontrando seu espaço dentro da gestão pública. O fato de ter sido constituída como uma empresa pública, por meio de uma lei, permite que a Spcine atravesse diferentes gestões, independentemente da afinidade do gestor com a pauta cultural. Isso também é possível porque fazemos política pública para entregar resultados. Por sermos uma empresa, temos autonomia no desenvolvimento das políticas, mas, ao mesmo tempo, mantemos uma conexão direta com as gestões. A partir do momento que conseguimos apresentar resultados concretos, visíveis e mensuráveis, é difícil que o trabalho seja descontinuado. É claro que sempre é necessário um alinhamento político. Como fortalecemos esse alinhamento? Mostrando resultados. Não adianta esperar que o trabalho continue apenas porque um gestor é mais alinhado com determinada pauta. As ações precisam traduzir-se em números e em mudanças reais na vida das pessoas e no setor.
CC: Você repetiu a palavra resultado. Você acha que, fora do setor audiovisual, a população percebe esses resultados?
LO: A Spcine foi criada a partir de uma demanda do setor produtivo, mas, desde o início, existia a preocupação de se entregar algo também para a sociedade. A conexão com o setor foi o que fez a Spcine existir, mas sempre se pensou em aliar isso à gestão pública, a partir de três pilares: a execução dos editais de fomento, a Film Comission, que faz a intermediação entre o espaço público e o setor que quer filmar nesses espaços, e o circuito Spcine, um programa de difusão audiovisual, que se comunica de forma direta com a população. A sala de cinema pública é um serviço. Nesses dez anos, o braço mais voltado à população teve altos e baixos. A partir de 2021, a relação com o cidadão paulistano foi se fortalecendo, com a ampliação do circuito Spcine e o crescimento da plataforma Spcine Play, que se tornou totalmente gratuita. O próprio serviço da Film Comission passou a dialogar mais diretamente com o cidadão – um exemplo disso é o decreto que regulamentou a filmagem em áreas estritamente residenciais. Quanto mais conseguimos contemplar a população, mais a gestão se sente contemplada e entende a importância do fomento ao setor. Com o tempo, fomos criando uma interlocução com diferentes públicos. A gente conversa, por exemplo, com o público de cinema da periferia, que pede determinados filmes.
CC: A escolha dos filmes é chave no circuito, não? Tem, de um lado, gente que acha um absurdo uma sala pública exibir os mesmos blockbusters estrangeiros dos shoppings. E tem quem argumenta que absurdo seria exibir nessas salas filmes brasileiros que pouca gente vê.
LO: Essa é uma eterna fonte de discussão e análise, tanto interna quanto externamente, mas o circuito já foi criado com esse perfil. As salas públicas existem para levar a experiência do cinema a todos os cantos da cidade. E a experiência de cinema tem que contemplar tanto o filme de grande circulação internacional quanto o cinema brasileiro de grande circulação, o cinema brasileiro independente e o cinema internacional independente. A diferença é que a gente coloca todos os filmes em cartaz e não segue uma lógica de mercado. Medida Provisória fez um público maior nas nossas salas do que Homem-Aranha. Por quê? Porque a gente manteve o filme por mais tempo em cartaz.
CC: Por que as distribuidoras topam licenciar os filmes para um circuito que é, em quase sua totalidade, gratuito?
LO: Porque ele está onde o circuito comercial não está. O distribuidor só estará nesses territórios, que são desertos culturais, se estiver no Circuito Spcine. E esse público, na maioria das vezes, não teria condições de pagar para ver o filme. A sala pública funciona como uma fomentadora do circuito comercial. Muitas vezes, quem tem a experiência na sala pública vai, em uma ocasião especial, ao cinema no shopping. Muita gente, no País, nunca teve acesso a uma sala de cinema.
“Existe uma desconexão histórica entre quem faz cinema no Brasil e o público brasileiro”
CC: Na relação com o setor audiovisual, a Spcine tem sido criticada pela ênfase nas políticas afirmativas. E parece que, de fato, ficou mais difícil uma produtora grande ganhar um edital. Como você responde a esse questionamento?
LO: Tento mostrar a política que está sendo implementada e por que ela está sendo construída dessa forma. Muitas vezes, o setor reage a uma ação pontual, como um edital: “Ah, esse edital é só para os grandes” ou “Nesse só pode realizador indígena”. Procuro mostrar um panorama do que está sendo feito. Não é um, não são dois editais, é o conjunto deles. Não consigo contemplar todo o setor com dois editais e, além disso, fazemos política pública para o contemporâneo. O edital de cinco anos atrás não funciona mais. A política pública da Spcine existe para fomentar o ecossistema do audiovisual paulistano, desde as grandes produtoras e distribuidoras, passando pelas médias, até o jovem realizador entrante. Essa tarefa demanda diálogo, escuta e articulação.
CC: As reações vêm tanto de um campo cultural mais à direita quanto de um campo progressista. A que você atribui as críticas vindas de quem é a favor das políticas afirmativas? E como elas batem em você, como mulher negra?
LO: É difícil dividir o bolo e, por isso, a gente briga para que o bolo aumente. Uma coisa é, dentro do seu ideal, você querer partilhar. Mas, quando menos empresas dentre aquelas que costumavam ganhar editais são contempladas, porque outras passaram a ser, gera-se um choque. Isso reflete a diferença entre o ideal e a prática. Como gestora, considero importante ouvir o questionamento, mas também explicar o trabalho e mostrar dados. As pessoas têm suas percepções, mas essas percepções não refletem necessariamente o contexto. As ações afirmativas começaram a ser implementadas em 2019 e, a partir de 2021, foram ampliadas. Inicialmente, eram mais voltadas para profissionais mulheres e pessoas negras, com algumas ações para pessoas PCD. A partir de 2021, foram incluídas pessoas indígenas e trans. As ações também passaram a se voltar para dentro da Spcine e, para fora, de forma mais ampla e transversal – em ações de formação e internacionalização. Sobre a outra pergunta: sou uma mulher negra, profissional do audiovisual, gestora pública que ocupa o cargo de presidente da Spcine. Sou tudo isso o tempo todo. Não há como negar que ser uma mulher negra traz um olhar diferente, mas é preciso que as ações tenham isonomia e atendam às demandas da sociedade e da gestão pública. Para a atual gestão, uma agenda forte são as ações periféricas. Foram ampliados não só o circuito Spcine, mas as ações de inclusão para a população periférica. Fomos questionados por ter levado, num grupo da Rede Afirmativa (criada em 2022), para uma ação internacional, um menino branco. Ele é um branco periférico. Ou seja, a cobrança vem de todos os lados. Mas nossa lógica não é excluir, jamais. Nossa lógica é incluir.
CC: Parece haver uma percepção de que os filmes que têm ganhado editais serão incapazes de ter bons resultados. Mas isso também não quer dizer que, antes, os ganhadores conseguissem isso…
LO: Existe uma desconexão histórica entre quem faz cinema no Brasil e o público brasileiro. Quando as pessoas que trabalham com audiovisual conseguem estabelecer uma relação com o público, elas tendem a avançar em termos de resultados e repercussão, mas a grande maioria não alcança essa conexão. É claro que sempre existirá o cinema experimental, mas, entre ele e o cinema comercial de grande público, temos a maior fatia da produção brasileira, que não consegue nem ter ousadia estética, nem ganhar prêmios relevantes ou alcançar um bom resultado de público. Essa fatia precisa estruturar-se melhor. Há outra questão: uma produtora audiovisual precisa ser uma empresa de fato, e não apenas um CNPJ que existe para atender a um pequeno grupo de pessoas.
CC: Você acha que há uma incompreensão em torno do papel da Spcine?
LO: Em alguma medida, sim. Eu mesma tive que entender como a gente opera: de onde vem a receita; em que momentos tenho independência para tomar uma decisão e em que momentos tenho que fazer uma articulação política; ou quando tenho que prestar contas ao Tribunal de Contas do Município. É preciso um cuidado não apenas técnico, mas ético, ao se lidar com recursos públicos.
CC: Você seguir aqui, nesta mudança de gestão, nos mostraria que, apesar de termos tido, como País, uma experiência traumática com um governo de direita em âmbito federal, nem todo governo de direita atacará a cultura?
LO: Não acredito que todo governo de direita, ou de centro-direita, vai colocar-se contra as ações culturais. Acredito que até governos de extrema-direita, ou quem opera dentro de uma lógica da extrema-direita, conseguiu, ainda que pelo embate, entender que o setor é forte, necessário e que tem uma existência significativa. Não é mais possível um governo olhar para o setor cultural e dizer: “Isso aqui não vai mais existir”. Hoje, um governo de centro-direita compreende que é preciso abrir diálogo com o setor criativo, que, além de gerar emprego e renda, projeta o nosso País. •
Publicado na edição n° 1345 de CartaCapital, em 22 de janeiro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Gerir o imaginário’