O ruído do som analógico ouvido enquanto correm pela tela os créditos iniciais de Luiz Melodia – No Coração do Brasil parece ter dois significados: nos remeter a um disco de vinil rodando na vitrola e nos ambientar às diferentes texturas de som e imagem que se seguirão.

O documentário sobre Luiz ­Melodia (1951–2017) dirigido por Alessandra ­Dorgan, em cartaz desde a quinta-feira 16, é, obviamente, um filme sobre música. O material que o constitui faz, porém, com que seja também um filme sobre imagens.

Selecionado para o encerramento do Festival É Tudo Verdade de 2024 e vencedor do In-Edit Brasil no mesmo ano, Luiz Melodia – No Coração do Brasil repassa a vida e a arte do cantor de uma forma que só o cinema poderia fazer: por meio de arquivos audiovisuais.

A partir do fino trabalho de montagem – que harmoniza o material de diferentes épocas e suportes –, as canções feitas ou interpretadas por Melodia alinhavam suas falas. É ele mesmo o narrador de uma vida que talvez só hoje, com o racismo visto como um nervo exposto do País, possa ser compreendida em sua complexidade.

Um dos aspectos que tornam o filme poderoso é que, a completar os sentidos do que o artista diz com sua linda voz, há um Brasil quase todo em preto e branco registrado por Thomas Farkas ­(Nossa Escola de Samba, 1965), Leon Hirszman (show Gal Costa Fa-Tal, 1969), ­Júlio ­Bressane e Eduardo Escorel (Bethânia Bem de Perto, 1966), Cacá Diegues ­(Cinco Vezes Favela, 1962) e Nelson Pereira dos Santos (Rio, 40 Graus, 1955).

A poética das imagens completa-se com fotos do acervo pessoal de Jane Reis, viúva de Melodia, e registros de ­shows que vão do início ao fim da carreira do artista nascido no Morro do Estácio, no Rio de Janeiro, filho de um pai que amava e fazia música.

Ver o autor de Pérola Negra, Juventude Transviada e Estácio, Holly Estácio em diferentes fases, com Gal Costa, Maria Bethânia e Elza Soares, não é pouco. “Enquanto existe música dentro de cada um, existe liberdade”, diz ele, na primeira sequência do filme, de tronco nu, e cabelos longos, em um show, antes de pedir que a plateia dance e cante.

Mas nem tudo é alegria e poesia. Os tropeços, o pânico do sucesso e as armadilhas da indústria fonográfica emergem da narrativa de forma consistente, e consciente.

É tudo isso que faz com que, embora sua biografia seja bastante conhecida – ele foi tema de outro documentário recente, Todas as Melodias (2020) –, Luiz Melodia acabe por emergir novo, e inteiro, deste filme. •

Publicado na edição n° 1345 de CartaCapital, em 22 de janeiro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A vida recontada em velhas imagens’

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 16/01/2025