A Era Trump e o Colapso do Pacto da Modernidade

A promessa de investir com virulência contra tudo que identifique como ameaça aos seus interesses torna os EUA de Donald Trump um potencial polo de instabilidade no Sistema Internacional

por Márcio Sampaio de Castro

Em 1814, sobre os escombros da derrotada Grande Armée napoleônica, as potências vencedoras lideradas pelo nascente Império Britânico celebraram o Congresso de Viena. Ainda que o grande acordo resultante tivesse por inspiração a restauração da antiga ordem monárquica, o evento lançou as bases de vários elementos constitutivos da chamada modernidade no campo geopolítico. A abolição do tráfico negreiro no Atlântico Norte, a definição de fronteiras estáveis, o reforço dos contatos diplomáticos e, principalmente, a observância de um equilíbrio de poder, que permitiria ao mundo europeu se impor econômica e militarmente sobre os povos não brancos pelos cem anos seguintes, foram medidas decisivas para a consequente expansão do capitalismo e de sua contradição subjacente: o liberalismo político.

O desfecho da grande guerra mundial (1914-1945), nos dizeres do historiador Eric Hobsbawm, trouxe à tona uma nova ordem, a Guerra Fria, que se estenderia até 1991, posteriormente substituída pela Pax Americana. Em todos esses momentos, ainda que guerras e revoluções tenham espocado em quase todos os quadrantes do planeta, houve sempre a sensação de que o bom senso prevaleceria e que, de alguma forma, haveria algum progresso humano como saldo dos conflitos.

O século XXI, inaugurado geopoliticamente pelos atentados de 11 de Setembro de 2001, parece crescentemente querer renunciar a algum tipo de ordem. A recondução de Donald Trump à Casa Branca, com sua acachapante vitória eleitoral em 2024, reforça essa percepção.

Mesmo antes da posse, o futuro mandatário conseguiu a proeza de fazer o mundo prender a respiração ao anunciar a intenção de ignorar o tratado que passou o controle do Canal do Panamá ao país que lhe dá nome, ao manifestar o desejo de incorporar o Canadá e a Groenlândia ao território dos Estados Unidos, de implantar um programa de deportação em massa de imigrantes, além de barrar a entrada de não brancos (o alvo de sempre) com medidas sanitárias na fronteira meridional do país. 

Seu secretariado está a altura desse posicionamento virulento e disruptivo. Como secretário de Estado o indicado é o senador Marco Rubio, que com discurso rematadamente sinófobo promete linha-dura com a China e com todos aqueles que se coloquem no caminho dos interesses nacionais estadunidenses. Outros dois nomes que prometem tornar as relações com o gigante asiático ainda mais tempestuosas são o secretário de Defesa Pete Hegseth e o consultor de Segurança Nacional Michael Waltz. Todos defendem que os Estados Unidos devem dar murros na mesa e falar mais alto para se impor no cenário internacional.

No âmbito doméstico, o quase trilionário Elon Musk será o encarregado da desburocratização do governo. Leia-se, entregar os projetos de interesse nacional ainda mais nas mãos da iniciativa privada, sistema que funcionou muito bem para suas empresas Tesla e SpaceX, que vêm recebendo recursos, empréstimos e subsídios do governo federal desde a gestão Obama. O que chama a atenção é a verve verborrágica de Musk, invariavelmente se alinhando a figuras de extrema-direita mundo afora. O capítulo mais recente desse padrão foi o apoio declarado a Alice Weidel, candidata ao cargo de chanceler alemã pelo partido de extrema-direita AfD (Alternativa para a Alemanha, em português). Para a secretaria do Comércio o nome escolhido é o de Howard Lutnick, um defensor ardoroso da guerra tarifária. A lista de nomes no secretariado trumpista com concepções questionáveis da realidade é grande.

Diante desse quadro, a imagem do trem fantasma do parque de diversões, onde a cada curva no escuro surge uma figura assombrosa, é incontornável.

Todos esses nomes e ideias truculentas reunidas representam a possibilidade de que tratados internacionais, leis e instituições multilaterais serão ainda mais empurradas a um paroxismo extremo, talvez um colapso do equilíbrio na ordem internacional com consequências inimagináveis. Mas o que mais preocupa é a base que sustenta esse fenômeno.

Não é novidade para ninguém que o trumpismo (com seus muitos admiradores fora dos próprios EUA) caminha sobre os ombros do fundamentalismo religioso, da xenofobia, do racismo e de uma difusa ideia de que é preciso salvar a civilização ocidental. Para isso, tem sido criada nos últimos anos uma narrativa reacionária. Diferentemente do conservadorismo que, como o nome propõe, objetiva conservar as estruturas dominantes, o reacionarismo pretende escrever o presente e o futuro reinventando o passado. O reacionarismo é a aposta na ruptura da ordem e até do tecido social.

Um bom exemplo disso é a fragmentação da clássica esfera pública moderna, onde originalmente o debate buscava minimamente constituir uma racionalidade e um denominador comum para as diversas forças sociais. No mundo trumpista das plataformas digitais de Bannons, Musks e Zuckerbergs, a aposta é no enxame informativo rapidamente substituído por outro e mais outro. Nesse caos discursivo, massas aturdidas e frustradas só encontram sentido nas vozes fortes e autoritárias que se impõem sobre as demais, prometendo, pela força, restabelecer a ordem.

Os Estados Unidos, já combalidos por sua relativa decadência e como epicentro desses movimentos, se posicionam no limiar dessa nova Era Trump como um verdadeiro touro miura, prometendo arremeter descontroladamente contra qualquer coisa que identifique como ameaça. Resistirá o moribundo pacto da modernidade à besta-fera? Veremos.

Márcio Sampaio de Castro é mestre em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. É professor nos cursos de Relações Internacionais e Propaganda e Marketing das Faculdades de Campinas (FACAMP), onde coordena o Grupo de Análise e Pesquisa sobre a China (GAP – China).

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Last Update: 16/01/2025