O encontro entre Lenin e o MST, por Roberto César Cunha

Lenin¹ comenta sobre o avanço civilizacional que a gigantesca revolução levada a cabo na agricultura pelo capitalismo, ao converter o rotineiro ofício de camponeses humilhados pela miséria e esmagados pela ignorância em aplicação científica da agronomia, ao interromper o marasmo secular da agricultura e ao imprimir um impulso ao rápido desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social. O impulso do capitalismo melhora os rebanhos e o trabalho da terra, aumentando as colheitas e desenvolvendo a especialização da agricultura, a divisão do trabalho entre as múltiplas explorações.

A uniformidade da monocultura foi substituída por uma diversidade cada vez maior, acompanhada pelo processo técnico de todos os ramos da agropecuária. Desenvolveram-se infraestruturas de transportes, aperfeiçoamento e construção de solo, e o emprego de fertilizantes e defensivos em consonância com os dados proporcionados pelo melhoramento genético animal e vegetal. Desse modo, o propulsor dessa revolução levada a cabo na agricultura é a concorrência. A concorrência leva à especialização que, por sua vez, leva à grande produção. A possibilidade da grande produção agrícola só é imposta pela penetração avassaladora do capitalismo no campo, por uma única razão: é mais radical e torna superior através do ponto de vista técnico.

Segundo Lenin, a grande produção é superior por razão de ser um fenômeno inerente ao capitalismo e evidencia-se mais ao ritmo do processo dinâmico do imbricamento entre indústria e agricultura. Quanto mais especializada se torna a agricultura, tanto maior é a diferença qualitativa que se estabelece entre a técnica da pequena e da grande produção. Há várias vantagens da grande produção em relação à pequena produção agrícola – menor perda de superfície, maior possibilidade de usar máquinas, maior aproveitamento dos instrumentos de trabalho, capacidade para a contratação de administradores preparados cientificamente, maior acesso ao crédito e superioridade comercial e financeira.

Dessa maneira, a especialização aumenta o uso de máquinas e insumos modernos, aumenta a produtividade do trabalho aplicado à terra, e requer menor quantidade de trabalho para explorar a mesma superfície de terra. Com isso, gera um excedente populacional, que é aparentemente prejudicial para o leitor não consequente na descodificação de Lenin. A superioridade da grande produção se desenvolve com o crescimento da população urbana às expensas da população rural, a introdução de máquinas no campo cria um contingente populacional que não consegue encontrar ocupação no próprio campo. Portanto, é um equívoco imaginar que a superioridade da grande produção no campo vai conter o êxodo rural. Esse excedente populacional, não existindo terras não ocupadas, é transferido para as cidades criando um exército industrial de reserva de mão-de-obra.

Assim, esse movimento tem o caráter progressista, pois: destrói as relações atrasadas até então vigentes no campo, e acumula, nas cidades, as forças históricas da sociedade. A superioridade da grande produção não deve ser freada e sim acelerada, para se obter uma transformação mais rápida para uma sociedade avançada. Isso facilita ao trabalhador perceber que o que o explora é a elite burguesa; acumula, nas cidades, uma classe livre de amarras, com maior capacidade de entendimento, com maior capacidade para transformar o descontentamento nu e surdo em protesto consciente. Cria novos personagens na economia e desenvolve o proletariado o urbano.

Com o desenvolvimento do capitalismo no campo, a indústria é para a agricultura uma fornecedora de tecnologia para as inovações nas atividades agrárias. Com incorporação de tecnologia no campo foi possível o aumento da divisão do trabalho, o que proporcionou trabalhadores qualificados, especializações dos instrumentos e ferramentas. Consequentemente, a agricultura é para a indústria uma solicitante de inovações em produto que passam a ser inovações em processo nas atividades agrícolas. As tecnologias utilizadas nas diversas atividades da agricultura no Brasil estabeleceram novas concepções e geraram cadeias produtivas que não são mais elucidadas pela velha bifurcação campo-cidade (rural e urbano).

Assim sendo, as missões históricas da grande produção no campo, conforme Lênin, são: preparar as bases políticas para luta de classes, acumulando nas cidades a força histórica da sociedade e desnudando a questão da exploração; predispor as bases materiais para uma sociedade avançada, liberando a acumulação das limitações impostas pelo restrito consumo das massas; e preestabelecer as bases sociais para a luta política, criando e desenvolvendo força social com proletariado rural e o urbano. E qual é a força política, material e social mais importante que se acumulou nas cidades nos últimos 50 anos nesse processo de modernização agrícola? O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

O encontro de Lenin e o MST não está somente no parcelamento de terras, mas também na superioridade da grande produção capitalista. O MST no decorrer de mais de 40 anos liderou diversas lutas, sobretudo da Reforma agrária. O resultado das lutas pela terra são 400 mil famílias assentadas e 70 mil acampadas.

No site do MST consta que: existem “185 cooperativas e 1900 associações, as quais possuem 120 agroindústrias de pequeno e médio porte. Essas empresas sociais atuam em diferentes níveis, da produção, agroindustrialização até a comercialização de alimentos. O amadurecimento dessas formas organizativas conduziu a criação de cadeias produtivas da Reforma Agrária, com produção em diferentes estados. As cadeias produtivas mais consolidadas nos assentamentos do MST são do arroz, leite, carne, café, cacau, sementes, mandioca, cana-de-açúcar e grãos. Todavia, a diversidade de alimentos produzidos em cada região do país passa das diversas centenas, abastecendo feiras locais e regionais, cestas e cooperativas de consumo, mercados locais e, principalmente, a alimentação escolar e de outros entes públicos, como asilos, presídios, quartéis, etc”². Além disso tudo, o MST é o maior produtor de arroz orgânico do Brasil.

Ademais, o acúmulo dessa força política nas cidades se demonstra em uma rede de empresas sociais com a própria marca denominada Armazém do Campo, onde comercializam bens agrícolas oriundos de assentamentos de reforma agrária, da agricultura familiar, orgânicos e agroecológicos. Verdadeiras boutiques de alimentos.

Essa reunião entre Lenin e o MST ficou mais clara com os resultados das últimas eleições municipais de outubro de 2024: “uma articulação inédita feita pelo MST levou à eleição de 133 candidaturas à vereança e à prefeitura, ligados à luta pela Reforma Agrária. Dessa forma, foram conquistados 110 eleitos e eleitas para os cargos de vereador e vereadora, além da ocupação de 23 prefeituras e vice-prefeituras pelo país, sobretudo em cidades interioranas, distribuídos em 19 estados brasileiros”³.

Entretanto, como essa reunião se dá em tempo histórico diferente, precisa-se esclarecer: (1) Lênin sempre escreveu e agiu sob os auspícios da perspectiva de revolução; (2) e o MST não tem isso no seu radar.

Dessa maneira, cabe lembrar que desenvolvimento do capitalismo aumenta e explicita, cada vez mais, a contradição entre o caráter social da produção e o caráter privado da apropriação, e a burguesia já se territorializou, ela não precisa de apoio para penetrar ainda mais no campo e submetê-lo aos seus interesses. Dessa forma, a luta apenas pelo parcelamento igualitário de terra não tem mais efetividade prática. Mesmo que haja uma especificidade do processo de acumulação na agricultura propriamente dita, atualmente a agricultura está inserida na lógica da acumulação capitalista que promoveu uma contiguidade entre os setores industrial, agrícola, comercial (financeiro) e de serviços. Dentro dessa conjuntura, a terra deixou de ser o principal ativo, e o capital, inovações tecnológicas, insumos, maquinarias, financiamento e comercialização tornaram-se os aspectos principais na produção agrícola.

Assim, os resultados do encontro com Lenin, nos dias atuais, com o desígnio de tonificar a força do MST acumulada nas cidades, terão mais possibilidades eficientes se passarem por intensividade em diretrizes similares:

i) programas de infraestrutura agrícola – construção de terras agrícolas de alto padrão, com inserção de kit tecnológico apropriado para maior produtividade (levando em consideração as mais variadas disparidades territoriais – fabricação de terroirs); projetos de fortalecimento das linhas de financiamento e comercialização;

ii) programas de infraestrutura agrária – financiamento e construção de moradia digna para os pequenos agricultores; entrega de equipamentos públicos e espaços de serviços públicos para as populações rurais; políticas de saneamento básico com acesso à água, tratamento de esgoto doméstico e resíduos rurais; construção de vias seguras de mobilidade rural, transporte e logística; políticas de saúde e nutrição rural; preservação da saúde e qualidade de vida da mulher do campo; projetos de gestão rural e agrícola; inclusão digital nas áreas rurais; políticas educacionais de acesso e permanência à escolarização no campo; projetos de qualificação profissional e valorização dos saberes tradicionais do campo.

(iii) programas de mitigação às mudanças climáticas: projetos de educação ambiental para as populações tradicionais e em vulnerabilidade socioambiental; projetos de preservação das paisagens rurais; incentivos
fiscais para utilização de novos fluxos de receita, como pagamentos por sequestro de carbono e geração de energia limpa; desenvolvimento de mercados para commodities inteligentes para o clima, pesquisa e
desenvolvimento de biocombustíveis e combustíveis renováveis.

Por fim, no processo de desenvolvimento histórico, o objetivo não é defender a pequena exploração e a pequena propriedade agrícola contra a grande produção, mas sim, defender o desenvolvimento das bases materiais, sociais e políticas para o enfretamento das lutas da sociedade contemporânea.

Notas

1 Revolucionário e teórico russo líder da revolução bolchevique de 1917. Todas as citações indiretas foram tiradas de: LÊNIN, Vladímir. Desenvolvimento do capitalismo na Rússia: o processo de formação do mercado interno para a grande indústria. Rio de Janeiro: abr, 1982.

2 MST. Nossa produção: https://mst.org.br/nossa-producao/.

3 MST. https://mst.org.br/2024/10/08/mst-elege-133-candidaturas-em-todas-as-grandes-regioes-do-pais/.

Roberto César Cunha – Geógrafo (UFMA), Doutor e Pós-doutor em Geografia Econômica (UFSC). Especialista em agronegócios e em Geoeconomia Verde. Professor da Faculdade Laboro. Pesquisador científico da FAPESC. Email: [email protected]. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3879077640339404

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Last Update: 15/01/2025