As recentes decisões da Meta sobre a retirada da verificação de notícias falsas em suas plataformas, evidenciam uma transformação alarmante no cenário global. Essa ação, aparentemente técnica ou de caráter operacional, possui implicações políticas, sociais e econômicas de grande alcance.

Ao abdicar de sua responsabilidade no controle da desinformação, a empresa não apenas reafirma sua posição como protagonista na construção do imaginário público, mas também demonstra como gigantes tecnológicos estão cada vez mais integrados a um sistema de poder global, que une interesses políticos, financeiros, tecnológicos, jurídicos e militares.

Essa fusão de poderes, descrita por Manuel Castells como algo sem precedentes, não ocorre de forma aleatória. É fruto de uma aliança estratégica entre os principais agentes da revolução digital e os centros tradicionais de poder. Empresas como a Meta, o Google e a Tesla assumem uma nova centralidade no cenário geopolítico. Elas não apenas fornecem infraestrutura tecnológica ou geram inovação; elas se tornam atores políticos diretos, moldando legislações, influenciando decisões judiciais e redefinindo as regras do jogo econômico global.

A decisão da Meta de abandonar a checagem de notícias falsas se encaixa perfeitamente nesse contexto. Quando uma das maiores empresas de tecnologia da atualidade, conhecida por ser proprietária de plataformas digitais como Facebook, Instagram, WhatsApp e Threads, com bilhões de usuários ativos ao redor do mundo, opta por não regular a qualidade da informação disseminada, ela não está apenas contribuindo para a desinformação; está ampliando sua influência sobre a formação da opinião pública e, consequentemente, sobre as decisões democráticas. Essa atitude se alinha a um modelo de negócios que prioriza o engajamento, muitas vezes impulsionado por conteúdos polarizadores e sensacionalistas, em detrimento da qualidade informativa.

No cerne dessa dinâmica está o papel ambíguo das gigantes tecnológicas como catalisadoras e motivadoras do fenômeno. Por um lado, essas empresas funcionam como facilitadoras da interconectividade global, promovendo a circulação de ideias e democratizando o acesso à informação. Por outro, tornam-se cúmplices, se não protagonistas, de uma concentração de poder que mina a soberania dos Estados Nacionais e desestabiliza processos democráticos. Isso ocorre porque, em vez de atuarem como mediadoras neutras, essas empresas frequentemente se alinham a interesses corporativos e governamentais, moldando suas políticas conforme as necessidades de um seleto grupo de elites globais.

O caso da Meta não é isolado. Nos últimos anos, vimos uma série de movimentos que consolidam esse padrão de comportamento. Desde as decisões de Elon Musk, utilizando o Twitter (agora X) como plataforma para influenciar debates públicos, até as parcerias de empresas como Palantir com o Pentágono e SpaceX com a Nasa, o que se desenha é uma nova arquitetura de poder. Ela não depende mais exclusivamente de Estados-nação, mas de uma aliança entre atores privados, militares e políticos, que utilizam a tecnologia como ferramenta de controle e domínio.

Essa fusão, portanto, não é apenas econômica ou tecnológica; é também ideológica. Por meio das redes sociais, essas empresas exercem um papel hegemônico na definição de narrativas e na construção de consensos. Isso é particularmente evidente em contextos como o brasileiro, onde a desinformação sobre eleições, políticas públicas ou questões de saúde pública se espalha rapidamente, influenciando decisões políticas e desestabilizando instituições.

Dessa forma, as decisões aparentemente isoladas, como a retirada da verificação de fake news, devem ser compreendidas dentro de um contexto mais amplo Elas não são meros ajustes técnicos, mas parte de um movimento deliberado de fortalecimento desse sistema integrado de poder, onde o capital tecnológico serve como motor para agendas políticas, financeiras, jurídicas e militares, muitas vezes alheias aos interesses das maiorias sociais.

A batalha perdida nas redes sociais

Jessé Souza, em sua análise sobre as classes populares brasileiras, revela como essas camadas são sistematicamente manipuladas por elites econômicas e políticas, que utilizam discursos ideológicos para manter as massas alienadas e submissas. No contexto atual, essa manipulação encontrou nas redes sociais uma ferramenta extremamente eficaz para perpetuar a desinformação e reforçar estruturas de dominação. Essas plataformas, que poderiam ser um espaço de emancipação coletiva, tornaram-se arenas de disputa simbólica onde a extrema-direita tem mostrado notável capacidade de articulação.

A extrema-direita, tanto no Brasil quanto no mundo, se apropriou habilmente da dinâmica das redes sociais para alcançar dois objetivos principais: amplificar preconceitos latentes e gerar desconfiança nas instituições democráticas. Com mensagens simplificadas, muitas vezes carregadas de apelos emocionais e polarizantes, essa estratégia não apenas consolida uma base ideológica, mas também desarma narrativas progressistas. Esse sucesso está ancorado na capacidade de traduzir complexidades sociais em slogans curtos e de impacto, projetados para viralizar e criar engajamento instantâneo.

Por outro lado, a esquerda, que historicamente busca a transformação social por meio da organização coletiva e da educação política, tem enfrentado dificuldades em se adaptar a esse novo cenário. Enquanto a direita trabalha com conteúdos que apelam ao emocional, explorando o medo, a insegurança e o ressentimento, a esquerda frequentemente prioriza discursos densos, técnicos e desconectados das linguagens populares que predominam nas redes. Essa abordagem não apenas limita o alcance das mensagens progressistas, mas também as torna menos atraentes para os públicos que mais necessitam ser conquistados: as massas populares e as juventudes.

Manuel Castells, inspirado por Gramsci, observa que a transformação social requer paciência e a conquista dos corações e mentes, porque as mudanças sociais profundas não se limitam a ações políticas ou econômicas, mas dependem de uma batalha pelas ideias, narrativas e valores que moldam as sociedades. Contudo, no Brasil, as redes sociais têm sido dominadas por um obscurantismo que favorece narrativas regressivas e antidemocráticas. O fenômeno é agravado pelo fato de que essas plataformas não são neutras; seus algoritmos privilegiam conteúdos polêmicos e divisivos, que geram maior engajamento. Nesse ambiente, a esquerda enfrenta um desafio duplo: competir com a extrema-direita em termos de alcance e relevância, enquanto mantém a integridade de seus valores e propostas.

No Brasil, a ascensão da extrema-direita é inseparável de sua capacidade de dominar as redes sociais. Desde as eleições presidenciais de 2018, ficou evidente que as plataformas digitais são o principal campo de batalha para a construção de narrativas e hegemonias políticas. Bolsonaro, por exemplo, utilizou grupos de WhatsApp, memes e vídeos curtos no YouTube para construir uma imagem de “antissistema”, conectando-se diretamente a milhões de brasileiros. Essa estratégia permitiu que ele contornasse os veículos tradicionais de comunicação e mobilizasse uma base de apoio fiel e engajada. Essa estratégia não apenas se manteve, como foi ampliada no período de seu governo, a partir do Gabinete do Ódio, instalado dentro do Palácio do Planalto e financiado com recursos públicos.

Mais recentemente, em 2024, Pablo Marçal se destacou como um fenômeno eleitoral que passou de influenciador digital a figura política de relevância nacional, ao capitalizar sua popularidade nas redes para atrair uma base eleitoral significativa. Durante as eleições para a prefeitura de São Paulo, ele surpreendeu ao obter 28,14% dos votos, um total de 1.719.274, ficando a menos de um ponto percentual (0,93%) de ultrapassar Guilherme Boulos e garantir uma vaga no segundo turno eleitoral da cidade que é o principal centro econômico, cultural e financeiro da América Latina, abrigando a maior bolsa de valores da região (B3) e sendo um dos maiores hubs de inovação e tecnologia.

Enquanto isso, a esquerda permaneceu presa a estratégias de comunicação que priorizam debates aprofundados e campanhas tradicionais. Apesar de adotar as redes sociais, a dificuldade em traduzir suas propostas de emancipação social em uma linguagem acessível e emocionalmente engajante a impede de competir de forma eficaz. A esquerda parece resistir à necessidade de simplificar sem banalizar, comunicar sem elitismo e adaptar-se às novas formas de interação digital. Isso implica o uso de narrativas que ressoem emocionalmente com as pessoas, conectando-se às suas experiências cotidianas e aspirações. Além disso, é preciso compreender que o engajamento não se resume a curtidas e compartilhamentos, mas à criação de comunidades online que possam se traduzir em ações políticas concretas.

A disputa nas redes sociais não é apenas simbólica; ela define os rumos da democracia e da justiça social. Para superar a hegemonia da extrema-direita, a esquerda deve abandonar sua relutância em se adaptar ao paradigma digital. É preciso simplificar, emocionar e engajar, mantendo os valores que sustentam suas propostas. A transformação social começa na mente e no coração das pessoas, e as redes sociais são hoje o principal espaço onde essas disputas ocorrem.

“A esquerda parece resistir à necessidade de simplificar sem banalizar, comunicar sem elitismo e adaptar-se às novas formas de interação digital.”

Reconexão com o povo

Uma das mais importantes falhas da esquerda contemporânea, como aponta Jessé Souza, é a desconexão com as vivências cotidianas das classes populares. A tecnologia, quando bem utilizada, pode servir como ponte para superar essa distância. No entanto, isso exige uma mudança de perspectiva: ao invés de enxergar o povo como receptor passivo de mensagens, é necessário construir um diálogo horizontal que reconheça e valorize as experiências e saberes populares.

Essa reconexão passa por abordar temas que toquem diretamente a vida das pessoas: saúde, educação, moradia, segurança alimentar e trabalho. Em vez de discursos abstratos e elitizados, é fundamental traduzir propostas políticas em histórias e soluções concretas que dialoguem com as aspirações e os medos das massas. Essa abordagem, combinada com um uso criativo e estratégico das tecnologias digitais, pode restaurar a capacidade da esquerda de mobilizar e inspirar.

Conclusão

A fusão de poderes que se consolida globalmente, integrando interesses políticos, financeiros, tecnológicos, judiciais e militares, representa uma ameaça sem precedentes às democracias contemporâneas. Esse novo arranjo de forças tem implicações profundas, particularmente para as populações mais vulnerabilizadas, que se encontram desprovidas de instrumentos para resistir a esse controle crescente.

Esse cenário reflete um modelo global, mas possui características locais que tornam o desafio ainda mais complexo. O Brasil, com suas profundas desigualdades sociais e um histórico de profunda exclusão racial, política e econômica das maiorias populares, enfrenta uma elite que alia poder econômico a um domínio cada vez maior sobre os meios digitais. Redes sociais, plataformas de streaming e sistemas de inteligência artificial são instrumentalizados para moldar narrativas, ampliar desinformação e consolidar o status quo. Nesse contexto, a esquerda brasileira enfrenta um dilema estratégico: como se reinventar para ocupar os espaços digitais com eficiência e impacto? Não se trata apenas de competir com a extrema-direita em volume de conteúdo, mas de criar narrativas que ressoem profundamente com as massas, traduzindo demandas históricas por igualdade e justiça social em uma linguagem acessível e emocional. A força dessa reinvenção passa pela nitidez nos objetivos, pela conexão genuína com as necessidades do povo e pela capacidade de mobilizar afetos em torno de um projeto de transformação social.

É preciso dar um jeito, meu amigo, como nos alertou o saudoso Tremendão. Esse jeito não será fácil, mas é possível. Passa por reconhecer a centralidade das redes sociais e das tecnologias de comunicação digital no cenário político contemporâneo. Passa por abandonar preconceitos contra estratégias emocionais e simplificadas de comunicação, desde que estas respeitem os princípios éticos que sustentam a luta progressista. E, acima de tudo, passa por resgatar a conexão com o povo, mostrando que um outro mundo é possível – e que ele começa na disputa das narrativas digitais.

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Last Update: 15/01/2025