Ainda sobre as minhas memórias
por Izaías Almada
ANO DE 1999
Inicio este capítulo das minhas memórias transcrevendo a crítica teatral do jornalista Fernando de Barros e Lima, publicada no jornal Folha de São Paulo. E o faço por se tratar de um depoimento que soube captar a abrangência e o sentido da montagem na comemoração dos 20 anos de Anistia no Brasil após o tormento e o selvagem período de perseguição aos que lutaram contra a ditadura militar imposta ao país em 1964:
20 ANOS DE ANISTIA
Encenada em um dos locais da repressão, peça relembra os piores anos do regime militar.
Espectador “vive” tortura no Dops
FERNANDO DE BARROS E SILVA
da Reportagem Local
“Tudo isso vai voltar, meu filho, o pior é que vai voltar, vai voltar.” A atriz Lélia Abramo deu alguns passos em direção ao deputado José Genoino (PT-SP) e o abraçou com força ao proferir essas palavras. Ambos choravam.
Permaneceram assim por quase um minuto. A cena ocorreu na última quinta-feira, durante a estreia da peça “Lembrar É Resistir”, sobre a tortura praticada contra presos políticos no regime militar.
Lélia, Genoino e cerca de 40 outras pessoas, entre as quais d. Paulo Evaristo Arns, cardeal-arcebispo emérito de São Paulo, e a atriz Ruth Escobar, não estavam num teatro qualquer. Estavam numa das celas do antigo Dops (Departamento de Ordem Política e Social), um dos centros da tortura em São Paulo, comandado no auge da repressão pelo então delegado Sérgio Paranhos Fleury.
O público é convidado desde a entrada a voltar 30 anos no tempo. O ingresso (gratuito) é uma ficha, que o espectador preenche com seus dados pessoais e na qual deixa a sua impressão digital. Está “preso”: “Passando dessa porta, todos são culpados até que provem o contrário; agora ninguém mais é inocente”, diz o ator-carcereiro ao fechar a porta da rua.
Cada sessão comporta cerca de 30 pessoas. Sempre de pé, elas vão sendo conduzidas de cela em cela, como presos, pelo labirinto do terror. Em cada uma delas, um grupo de atores “revive” episódios exasperantes da prisão e da tortura, alguns passados no próprio Dops, outros retirados de outros centros da repressão, como o DOI-CODI, na Rua Tutóia.
“Lembrar É Resistir” foi escrita por Izaías Almada (ex-preso político) e Analy Alvarez. É dirigida por Silnei Siqueira e encenada por 14 atores, entre os quais uma ex-presa política, Nilda Maria. Patrocinado pelo governo do Estado, o espetáculo integra as comemorações dos 20 anos da Lei da Anistia, sancionada em 28 de agosto de 1979 pelo então presidente João Baptista Figueiredo. Catarse e comoção.
Militante histórica de esquerda, Lélia Abramo, 87, estava visivelmente abalada ao final da estréia. Quando, no meio da peça, teve o acesso de choro, abraçou Genoino e chegou a cambalear, uma das atrizes perguntou se ela gostaria de sair. “Eu fico, está tudo bem”, respondeu. No final, disse à Folha: “O momento atual é tenebroso. Não há nenhuma perspectiva de melhoria social e, se não nos defendermos, corremos o risco de cair numa situação análoga à que acabamos de ver”.
Lélia esteve presa por um dia no Dops, em 69.
Também passou por lá o deputado Genoino. Preso no Araguaia em abril de 72, Genoino chegou ao Dops no início de 73. Já havia sido torturado no DOI-CODI. Nos três meses em que permaneceu no Dops, não sofreu tortura, mas ficou incomunicável numa das “solitárias”, que os presos chamavam de “fundão”. Por conta disso, o deputado até hoje tem pânico de ambientes fechados e evita, por exemplo, andar de elevador.
“Não foi fácil rever isso tudo. Os policiais estão muito bem representados, e os diálogos são muito fiéis”, disse Genoino.
Impávido durante todo o espetáculo, d. Paulo, uma das lideranças mais atuantes contra a tortura, disse ao final que ficou “profundamente envolvido, como naquele tempo. A cena da morte do Vlado talvez tenha sido a que mais me marcou”. Referia-se à passagem da peça que narra o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, preso e morto no DOI-CODI em 25 de outubro de 75. “Ainda vou escrever coisas que não foram ditas sobre esse período”, disse d. Paulo, recusando-se a adiantar quais seriam elas.
A atriz Nilda Maria, a única do elenco que esteve presa no Dops, foi detida quando encenava a peça “O Balcão”, com Ruth Escobar, em 70. Fazia então o papel de uma guerrilheira. Nilda ficou sete meses em três prisões diferentes: “Por um lado, fazer a peça é muito sombrio, mas é uma catarse necessária, que eu vejo às vezes como uma predestinação”, disse.
Na estréia, a historiadora Janaina Teles, 32, e sua mãe, Maria Amélia de Almeida Teles, estavam entre os espectadores. A segunda chorava muito, lembrando quando sua filha, então com 5 anos, foi levada ao DOI-CODI, onde ela estava, como forma de torturá-la psicologicamente. Janaina diz lembrar-se de “gritos, escadas e da cela” em que estavam seus pais, que, segundo diz, tinham acabado de ser torturados. “Tenho medo apenas que as comemorações em torno da anistia fiquem restritas às vítimas diretas da tortura”, disse Janaina.
Eu acabava de voltar de uma das minhas muitas viagens a Portugal, quando fui procurado pelo Secretário de Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo, Belisário dos Santos Júnior, perguntando-me se eu gostaria de participar da escrita de um texto em parceria com a atriz Analy Alvarez, a ser apresentado nas celas do Departamento Político de Ordem Social (DEOPS).
Aceitei de pronto e ainda bem que o fiz, pois como a atriz não tinha qualquer experiência de militância política dentro das Organizações que se dispuseram a enfrentar a ditadura de maneira mais efetiva e radical e nem passara pelo terror da caçada aos “terroristas”, como passamos a ser designados pelas forças de repressão e por toda a imprensa brasileira, consegui de alguma maneira evitar que a peça incorresse em alguns jogos de cenas ambíguos como, por exemplo, colocar os presos a cantar o Hino Nacional quando um dos companheiros era posto em liberdade.
A música mais cantada era uma de Caymmi, “Marcha dos Pescadores” ou ainda a “Internacional”. O hino nacional era naquele momento o hino oficial da ditadura e seria um contrassenso ser cantado pelos prisioneiros e, além do que, uma mentira.
Levantei a questão com o grupo e tive a oposição da autora e de seu companheiro o ator Luís Serra. Coisas do teatro…
O embate foi sério e cheguei a ser ameaçado de agressão física, mas a verdade prevaleceu e o Hino Nacional foi retirado com o apoio da maioria do grupo.
“Lembrar é Resistir” foi um sucesso em São Paulo com a direção de Silney Siqueira e também no Rio de Janeiro, sob a direção de Nelson Xavier.
Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro nascido em BH. Em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.
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