“Hamlet” é considerada a mais filosófica das peças de William Shakespeare. Sua primeira encenação ocorreu no verão de 1600, na época do chamado teatro elisabetano, dentro do reinado da rainha Elizabeth I (1558/1603).

O contexto histórico é o do renascimento, aclimatado às condições da Inglaterra, com a retomada da arte clássica grega e romana e os impactos culturais decorrente de importantes transformações nas áreas do conhecimento, da economia e da política.

As grandes navegações tornaram conhecidos os territórios da América, pouco tempo depois do desenvolvimento da teoria heliocêntrica de Nicolau Copérnico, redimensionando radicalmente a percepção do homem diante do mundo e confrontando-os como povos desconhecidos.

Tratava-se do alvorecer da modernidade, quando foram se constituindo os primeiros Estados Modernos, com o pioneirismo de Portugal através da Revolução de Avis (1383/1385), e a formação do absolutismo monárquico, com a centralização do poder político e administrativo do Estado na figura do monarca.

O modo de produção feudal foi cedendo espaço ao comércio e às cidades (burgos), com a consolidação de uma nova classe social, a burguesia, que, cem anos depois, seria alçada ao poder através da Revolução Francesa e da disseminação de suas ideias pelos séculos XVIII e XIX. A reforma protestante pavimentou a perda do monopólio da arte pela Igreja Católica. No ramo da tecnologia, houve a descoberta e disseminação da imprensa, que ampliou consideravelmente a circulação de ideias; houve o desenvolvimento da astronomia, dos meios de navegação e de armas de pólvora, sem as quais o navegadores não teriam condições de conquistar o novo mundo e implementar suas colônias de “povoamento” ao norte e “exploração” ao sul.

“Hamlet” é uma peça que expressa esse momento de transição, da idade média à modernidade.

Pode-se dizer que o seu protagonista representa um primeiro sinal nas artes do homem moderno: diferentemente dos heróis de cavalaria das histórias medievais, o Príncipe herdeiro da coroa dinamarquesa é um ser eivado de contradições, hesitante, que em determinados momentos revela não saber para onde vai e nem quem é, o que aparece no monólogo mais conhecido da história do teatro, que começa com o “Ser ou não ser? – eis a questão”.

Trata-se de uma tragédia cujo tema principal é o da vingança de Hamlet pela morte de seu pai, Rei da Dinamarca.

A versão oficial justificou a morte do monarca pela picada de uma serpente nos jardins do castelo real. No primeiro ato, o príncipe de Elsinor ainda está de luto pela morte do pai e demonstra profunda frustração com a sua mãe, a rainha Gertrudes. Menos de dois meses após a morte do marido, a rainha casa-se com o tio de Hamlet, um homem libertino chamado Cláudio, que é alçado à coroa como novo Rei em substituição ao irmão.

Cláudio faz orgias e representa a desmoralização do trono da Dinamarca perante os olhos do povo: utilizando uma expressão da peça, “a gota do mal, uma simples suspeita, transforma o leite da bondade no lodo da infâmia.”.

As novas circunstâncias do Reino, com a súbita morte do Rei e o imediato casamento da Rainha com Cláudio, “antes mesmo que gastasse as sandalhas com que acompanhou o corpo do meu pai”, causa repugnância ao Príncipe.

“Havia algo de podre no Reino da Dinamarca” – eis outra expressão da peça que é hoje conhecida por todos.

E a descoberta do mal acontece já no primeiro ato, quando da aparição do fantasma do Rei destronado perante o seu filho, quando lhe revela a farsa de Cláudio. Corroborando as suspeitas iniciais do Príncipe, descobrimos que o Rei foi assassinado por seu irmão para lhe tomar o trono, com o beneplácito da Rainha.

A súbita aparição do fantasma indica um mau agouro ou o início de uma catástrofe: a revelação do fratricídio dá início ao tema central da peça, qual seja, a mobilização de Hamlet, com as suas hesitações, para vingar a morte do pai.

A estratégia utilizada pelo protagonista é a de simular a loucura pela morte trágica do Rei para com isso dissimular os seus planos perante o Tio e a Rainha. Entretanto, nos monólogos de Hamlet, que são interpretados pelos demais personagens como sintomas da loucura, o que se verifica é o uso da ironia e da retórica como meios de desmascarar a hipocrisia e o cinismo daqueles que circundam o poder. A loucura de Hamlet, enunciada através do discurso, serve para se evidenciar a realidade, incluindo a crítica propriamente política, expressa na ridicularização de Polônio, um conselheiro de estado que se notabiliza pela bajulação aos poderosos e pelo oportunismo.

Uma passagem crucial da peça é a iniciativa de Hamlet de convidar um grupo de artistas para fazer uma encenação teatral a ser exibida ao Rei e à corte.

A história que seria encenada teria o mesmo enredo da trágica morte enunciada pelo fantasma. Ao exibir uma trama em que o Rei é assassinado por alguém próximo, de confiança irrestrita, para lhe roubar o trono, Hamlet quer com isso ver qual seria a reação de seu tio. Pede ao seu amigo de confiança Horácio que observe de perto Cláudio ao final da peça: a proposta é utilizar a arte para explorar o remorso na consciência do novo Rei e, a partir da sua reação, ter a certeza da versão da morte trazida pelo fantasma.

A encenação da “peça dentro da peça” marca um segundo momento do enredo: Cláudio e Gertrudes saem do espetáculo constrangidos, dando veracidade às denúncias do Rei assassinado. A partir deste momento, Hamlet não mais tem dúvidas do que aconteceu com o seu pai. E a partir daqui Cláudio passa a demonstrar em suas falas a sua autoria do assassinato e a sua intenção de afastar o seu sobrinho da Dinamarca, encaminhando-o para a Inglaterra, com ordens para ser executado.

Uma interpretação interessante da peça envolve a remissão dos personagens a orientações filosóficas presentes no contexto em que a história foi escrita.

Como dito, essa foi a mais filosófica das peças de Shakespeare. Nela não predominam os diálogos, mas aos solilóquios de Hamlet, os seus monólogos interiores, enunciados na forma de versos, que vão denotando questões existenciais típicas do pensamento filosófico. Abordam-se temas como os da morte, o envelhecimento, o desejo de vingança, a audácia e a covardia na ação política, o complexo edipiano de Hamlet perante a mãe, a corrupção política, da arte como forma expressão da realidade (encenação de “peça na peça”.).

Há em Hamlet algo de maquiavélico. Maquiavel foi o mais popular filósofo do renascimento. É discutível que Shakespeare tenha lido “O Príncipe” já que, ao que consta, a primeira tradução em inglês da obra data de 1640, décadas depois da morte do autor. Mas em todo o caso, a noção de que a luta desesperada pelo poder admite a adoção de todos os meios possíveis, sem exame de moralidade, foi o que levou Cláudio a matar o rei Hamlet: os fins justificam os meios. E o mesmo maquiavelismo se relaciona com a ideia de que a luta política também exige uma habilidade teatral, com a qual o protagonista Hamlet simulou a sua loucura para executar o seu plano de vingança.

O rei deve reunir em si os atributos da virtude e da fortuna. A ausência de um ou de outro dará ensejo ao trágico fim da peça com o esfacelamento de toda a família real dinamarquesa.

Há em Horácio, o melhor amigo de Hamlet, elementos do estoicismo de Sêneca, pensador romano cujas peças de teatro influenciaram profundamente o teatro elisabetano. Hamlet admira seu amigo por sua serenidade e resignação. A disposição de espírito apropriada para quem aparenta a aceitar o que a fortuna o reserva desperta é atributo que desperta a simpatia de Hamlet por Horácio, ele próprio, um estudante de filosofia.

Ao fim e ao cabo, como é típico das tragédias, as controvérsias são dirimidas através da morte violenta.

Cláudio é morto após ser atravessado pela espada de Hamlet. A Rainha Gertrudes bebe por acaso um copo de vinho envenenado pelo Rei que deveria servir o príncipe e também falece. O protagonista é morto num duelo, também no último ato. Ofélia, amada por Hamlet, morre por suicídio. E a história termina com a marcha fúnebre de toda família real dinamarquesa….

Sobre William Shakespeare

Não seria exagero dizer que William Shakespeare foi o maior dramaturgo da história das artes cênicas, desde as primeiras experiências do teatro grego, por volta do século VI a.C. É, em todo o caso, indene de dúvidas que as suas peças foram a que mais tiveram encenações por todos os cantos do mundo, com traduções para todas línguas modernas e as mais diversas adaptações na literatura e no cinema.

“Hamlet”, “Romeu e Julieta”, “Rei Lear” e “Otelo” foram não só exaustivamente encenadas mas serviram de ponto de partida para a criação e o desenvolvimento do Teatro Moderno. Ou seja, encontram-se ecos das tragédias e comédias shakespearianas em toda a produção cênica subsequente.

Para pegarmos o exemplo de “Otelo”, cuja tragédia teve como esteio a intervenção diabólica do personagem “Iago”, pode-se encontrar reverberações dessa história em peças teatrais de José de Alencar a Nelson Rodrigues, respectivamente através das peças “Demônio Familiar” e “Toda Nudez Será Castigada”, cada uma com os seus respectivos “Iagos”. Em Alencar, na figura de “Pedro”, um escravo que se utiliza de vivacidade e malícia para tumultuar a vida doméstica e satisfazer os seus interesses pessoais; e em Nelson Rodrigues pela na figura de “Patrício”, outro manipulador que corrompe tudo e todos que gravitam ao seu redor. Obviamente, os dois exemplos do teatro nacional se estendem a todo o resto do mundo.

A despeito da ampla repercussão das obras de Shakespeare, há muitas lacunas na biografia do artista, o que talvez se justifique por se tratar de um homem que viveu e atuou no século XVI, há mais de quinhentos anos, portanto. Quando escreveu a maior parte de suas peças, havia pouco mais de um século que os Europeus atingiram a América pela primeira vez; há noventa anos de diferença entre as principais peças do escritor inglês e a descoberta do Brasil, para se ter uma dimensão.

As primeiras alusões ao nome de Shakspeare em documentos históricos datam de 1592 quando foi publicada na imprensa londrina uma crítica (desfavorável) de uma de suas peças. No início do século subsequente, poucos anos após a sua morte, houve a primeira compilação de suas peças.

Sabe-se que o grosso da atividade intelectual do dramaturgo deu-se entre 1590-1613. Há até hoje o registro de 38 peças de Shakespeare, além de poemas e sonetos. Àquele tempo, não havia uma divisão de tarefas envolvendo o autor do roteiro, o diretor, o ator, o empresário e a equipe técnica. As companhias de teatro da época eram formadas por dez a quinze membros e funcionavam como cooperativa. Todos recebiam e participavam dos lucros. Além de escrever as peças, Shakespeare atuava como ator e o que poderíamos dizer, não sem algum, anacronismo como “empresário” que articulava e comercializava as encenações.

Os teatros da era elisabetana eram feitos de madeira, a céu aberto, com um palco que se projetava à frente, em volta do qual se punha a plateia de pé. Ao fundo havia duas portas, pelas quais os atores entravam e saíam. Não havia cenário, de tal forma que a peça começava com a entrada do primeiro ator e terminava à saída do último. Como havia uma grande proximidade do público – mormente se considerando inexistir microfone ou aparelhos amplificadores de som – trejeitos e expressões faciais dos atores eram bem percebidas. Em nenhuma hipótese havia atriz: mesmo as personagens femininas eram desempenhadas por homens.

Estima-se que milhares de pessoas assistiram as encenações de Shakespeare.

As peças foram já àquele tempo reunidas e comercializadas em livro. (O advento da imprensa através do trabalho de Johann Gutenberg deu-se cerca de 150 anos antes do nascimento do dramaturgo).

As informações disponíveis indicam que o Shakespeare terminou a vida em boas condições financeiras, o que se deu através do êxito de seu trabalho como dramaturgo. Contudo, ao final da vida, as encenações foram prejudicadas por conta da disseminação na peste negra na Inglaterra.

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Last Update: 15/01/2025