O Pix e a comunicação (que deveria ser) estratégica, por Eliara Santana
Recebi há pouco a notícia de que a Secom do Governo Federal solicitou às quatro agências de publicidade que servem à pasta uma campanha para esclarecer a população e deter a enxurrada de fake news sobre o PIX. Esse assunto das medidas recentes sobre o PIX está no meu radar desde o comecinho, mas vi tantas falas com defesas incontestes do governo, ressaltando que é tudo simples, só corrupto e “burro” não entende, que me recolhi à minha insignificância. Afinal, não entendo mesmo de economia – sempre recorro às amigas phodas da área pra comentar alguma coisa – e não gosto de dar palpite sobre o que desconheço somente pra ganhar espaço. Penso que os tempos estão muito difíceis – e seguirão – para o campo progressista ficar disputando quem lacra mais. Mas falo sobre o que sei. E sei sobre comunicação, sei sobre discurso e sei sobre desinformação – ninguém analisa 3 mil edições do JN e acompanha Nikolas Ferreira e Bolsonaro impunemente hahaha.
Como o tema não se esgotou e chegou ao combo dessas três coisinhas sobre as quais posso falar, eu quero colocar alguns pontos pra gente refletir. E antes que venham as pedradas na Geni, digo que não estou atacando o Governo, tampouco dando receitas – quero propor reflexões para estes tempos desafiadores.
Meu primeiro ponto é: TODA DÚVIDA É LEGÍTIMA.
As pessoas, de um modo geral, têm dúvidas, angústias, não entendem economia, não sabem como funcionam as instituições financeiras, uma massa enorme está na informalidade e morre de medo de taxação.
Segundo ponto: a extrema direita INSTRUMENTALIZA medos, angústias, dúvidas. Por exemplol, ela bate na tecla do imposto, da “fome” de imposto por parte da esquerda desde a eleição de Jair, o não convidado. Alinhado a esse discurso está outro, muito poderoso: a ideia de CONTROLE. “A esquerda quer espionar você pra controlar seu dinheiro”. As pessoas temem o controle.
Vejam aí a narrativa surgindo: o governo Lula vai te espionar pra pegar seu dinheiro.
Vocês se lembram, lá atrás, bem atrás, da ideia de que o MST ia invadir sua casa e sua gleba, por menor que fosse, se Lula ganhasse? Não ia existir propriedade privada etc. Todo sitiante tinha pânico de Lula por causa disso.
Essas coisas não somem por decreto, e são recuperadas na memória das pessoas por vários gatilhos e várias estratégias.
Terceiro ponto: não podemos ser reativos apenas, precisamos ser propositivos; precisamos antecipar as narrativas que virão. Minha gente, o PIX é só o começo nessa guerra pra 2026. Comunicação é estratégia e é estratégica. A gente pode até achar que está tudo certo, autoexplicativo – só teme a informação sobre PIX quem é corrupto –, mas não é assim que funciona no imaginário de uma população atravessada pela desinformação, de todos os lados, sobre todos os temas. A partir de agora, precisamos considerar dois lados – o fato, o acontecimento, e a versão desinformativa sobre ele. As coisas só fazem sentido se forem EXPLICADAS.
Quarto ponto: essa contranarrativa poderia ter sido antecipada; a explicação relativa à medida sobre o PIX precisava ter sido esmiuçada, explicada, desenhada, mostrada, com memes tomando conta das redes. A conexão para o entendimento sobre temas difíceis precisa ser construída.
Pra fechar esse blá blá blá reflexivo, vamos fazer um exerciciozinho primário e breve pra pensar essa construção narrativa antecipada. Alerta: O EXEMPLO A SEGUIR É FICTÍCIO. NÃO É VERDADE. APENAS PARA ILUSTRAR.
Vamos supor que o Governo vai anunciar uma medida pra monitorar o consumo de ovo branco porque o Ministério da Saude e o da Agricultura descobriram que esse tipo de ovo é mais prejudicial à saúde. É algo corriqueiro e passaria despercebido em outros tempos.
Mas… não estamos em “outros tempos”.
1 Atualmente, nada mais é corriqueiro ou passa despercebido
2 O brasileiro gosta de ovo branco
3 A extrema direita fica de olho nos hábitos do brasileiro
Muito bem, com isso em mãos, e com o monitoramento em dia dos principais atores e influenciadores, vamos pensar, antes de anunciar a medida:
Como a extrema direita pode usar isso do ponto de vista narrativo? Vamos ver o que disseram os atores principais sobre ovo branco. O que está no imaginário das pessoas? A extrema direita está de olho no ovo branco? Ele suscita que ideias? Pureza? Paz? Alma elevada? O brasileiro gosta? O pastor pode falar do ovo branco no culto e nas redes. Esses influenciadores podem questionar pq não monitorar o ovo vermelho com argumentos do tipo “ah, pq é vermelho!!!”. “Ovo do demônio, o demônio gosta de ovo vermelho”. Pimba! Essa ideia pode viralizar. O mercado de ovo vermelho pode implodir com as mentiras. Então, talvez devamos pensar numa campanha de esclarecimento ANTES de anunciar o monitoramento do ovo.
É um exemplo bobinho, mas é somente uma tentativa – repito, não é receita – de refletir de modo mais leve sobre um tema complexo – não o ovo branco, mas a comunicação (que deveria ser) estratégica.
Eliara Santana é jornalista, doutora em Linguística e Língua Portuguesa, com foco em Análise do Discurso. Ela é pesquisadora do Observatório das Eleições e integra o Núcleo de Estudos Avançados de Linguagens, da Universidade Federal do Rio Grande. Coordena o programa Desinformação & Política. Também Desenvolve pesquisa sobre desinformação, desinfodemia e letramento midiático no Brasil.
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