Se já era sabido que o respeito aos direitos humanos e a restrição a discursos de ódio nunca foram pontos fortes das redes sociais, com o anúncio recente de mudanças na política de conteúdo da Meta ficou comprovado que as big techs estão se lixando para conquistas civilizatórias básicas e têm um claro posicionamento ideológico alinhado à extrema-direita.
Ainda que, por ora, tais alterações estejam limitadas ao território estadunidense, a tendência é que se propaguem para outros países, o que vem preocupando autoridades e especialistas.
Após o dono da empresa, Mark Zuckerberg, anunciar que acabaria com o sistema de checagem e afrouxaria o controle de postagens nos Estados Unidos, abrindo caminho para discursos preconceituosos e alinhados ao ideário de Donald Trump, as novas regras foram publicadas também em português.
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De acordo com a nova política da empresa — dona do Facebook, Instagram, Thread e WhatsApp — ficam liberadas, por exemplo, “alegações de doença mental ou anormalidade quando baseadas em gênero ou orientação sexual, considerando discursos políticos e religiosos sobre transgenerismo e homossexualidade, bem como o uso comum e não literal de termos como esquisito”.
Também permite que usuários utilizem mensagens com “linguagem insultuosa no contexto de discussão de tópicos políticos ou religiosos, como ao discutir direitos transgêneros, imigração ou homossexualidade”.
Além disso, diz que “em outros casos, discursos, incluindo calúnias que poderiam violar nossos padrões são usados de forma auto referencial ou empoderadora. Permitimos esse tipo de discurso quando a intenção da pessoa está claramente definida”. A seguir, argumenta que se a intenção não estiver clara (seja lá como isso será aferido), o conteúdo poderá ser removido.
Na esteira dessas alterações, a Meta — assim como a Amazon — também comunicou o fim de seu programa de Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI), em estreito alinhamento com posições adotadas por Trump, que assume a presidência dos EUA no próximo dia 20.
Documento revelado aos veículos New York Post e Axios traz mensagem assinada pela vice-presidente de Recursos Humanos da Meta, Janelle Gale, na qual a empresa procura justificar sua motivação.
“O panorama jurídico e político em torno dos esforços de diversidade, equidade e inclusão nos Estados Unidos está mudando”, diz. O documento aponta ainda que “o termo ‘DEI’ também se tornou carregado, em parte porque é entendido por alguns como uma prática que sugere tratamento preferencial de alguns grupos em detrimento de outros”.
Repercussão no Brasil
Após o teor da nova política ser tornado público, uma série de entidades e especialistas da área se manifestaram, alertando para os riscos que tais mudanças podem oferecer, especialmente para minorias e populações historicamente discriminadas.
Em nota, a Aliança Nacional LGBTI+ e pela Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas (ABRAFH), defendeu ser necessário “revisar a atuação do Grupo Meta no país e, se cabível, impor sanções para assegurar que o ambiente digital não seja palco para retrocessos democráticos e violações de direitos”.
Para as entidades, a decisão da Meta “viola os princípios dos direitos humanos, retrocedendo conquistas históricas e reforçando estigmas que colocam vidas em perigo. É essencial recordar que, desde 1990, a Organização Mundial da Saúde não reconhece a homossexualidade como doença, posição corroborada por tratados internacionais que o Brasil subscreve”.
À Agência Brasil, Renan Quinalha, presidente do Grupo de Trabalho Memória e Verdade LGBT e um dos principais pesquisadores sobre o tema no Brasil, lembrou que “durante muito tempo, fomos considerados não só pecadores, pelas igrejas, e criminosos, pelos Estados, mas também doentes. O estigma que nos foi imposto pelo saber médico é dos mais profundos, porque sempre se beneficiou da legitimidade e do prestígio da ciência. Não por outra razão, uma de nossas batalhas mais antigas tem sido precisamente pela despatologização, ou seja, para não haver essa associação das existências LGBTI+ a uma doença.”
Para fazer frente a esses outros abusos e retrocessos por parte das redes sociais, Débora Salles, coordenadora-geral de pesquisa do Laboratório de Estudos de Internet e Redes Sociais (NetLab) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, defendeu, também em entrevista à Agência Brasil, uma ação integrada entre países.
“Sem dúvida, o Brasil é um país enorme, um mercado muito relevante, mas do ponto de vista institucional, não tem tanta força. Então a gente se unir com outros países da América Latina, por exemplo, pode ser um caminho, porque enquanto bloco a gente ganha mais força. E as plataformas agem em blocos quando precisam. Na tramitação do PL 2630, existia uma campanha em que todas elas se envolveram, para garantir que o PL não fosse para frente. Então acho que a gente precisa fazer alianças, talvez transnacionais”, afirmou.
Outro ponto salientado por Débora diz respeito ao desmascaramento quanto à forma como a empresa realmente age. “Tem uma coisa muito importante que está aí nas entrelinhas, que é a Meta admitindo que determina aquilo que a gente pode ou não pode ver nas suas redes sociais e que essa decisão não é transparente. Então, a gente está lidando com uma decisão arbitrária e a partir de agora os critérios vão ser menos rigorosos para a remoção de conteúdo”.
A reação do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) também foi contundente. Em nota, a entidade ressaltou que “essa postura revela as big techs como verdadeiras ferramentas geopolíticas que visam desestabilizar a ordem internacional. O anúncio da Meta não se limita a uma nova política de moderação de conteúdo, mas configura um movimento político que ameaça a integridade das democracias em todo o mundo”.
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E destacou, ainda, que “ao alinhar-se às ideias de Donald Trump, Elon Musk, e outros representantes da extrema-direita, a Meta reforça uma agenda política destrutiva internacional, com objetivo de fragilizar as instituições democráticas e a justiça social, e concentrando ainda mais poder político e econômico nas mãos de poucos, preferencialmente, nos Estados Unidos”.
Além disso, o comunicado diz ser “imprescindível que governos democráticos e organizações da sociedade civil de todos os países intensifiquem os esforços para regular as plataformas digitais, a fim de garantir um ambiente online mais justo, seguro e respeitoso, livre de manipulação, desinformação e ódio”.
Governo em alerta
Logo após o anúncio feito pela Meta, no último dia 7, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva classificou a decisão como “extremamente grave” e defendeu que os países devem ter sua “soberania resguardada”.
Na sequência, em reunião com ministros na sexta-feira (10), Lula disse que a Meta terá de se enquadrar às leis nacionais. Além disso, ficou decidida a apresentação, por parte da Advocacia-Geral da União (AGU), de notificação à empresa para que explique tais mudanças no prazo de 72 horas.
Ao mesmo tempo, o governo criou um grupo de trabalho para acompanhar o desdobramento das medidas.
Outra frente de atuação do governo é intensificar a articulação para que seja retomado o debate em torno da regulação das redes, travada na Câmara desde que o presidente, Arthur Lira (PP-AL), decidiu que deveria ser criado um grupo de trabalho para redigir novo relatório relativo ao PL 2630.
Em entrevista a jornalistas, o ministro da Casa Civil, Rui Costa, disse que o governo deve “afunilar uma posição”, e completou dizendo que “vamos procurar os líderes e os presidentes das duas Casas para dialogar sobre qual é o melhor formato, qual a melhor forma de fazer com que esse debate avance”.
Na Câmara, o vice-líder do governo, deputado Alencar Santana (PT-SP), sinalizou que pretende convidar representante da Meta no Brasil para explicar ao Congresso as mudanças pretendidas. “O conceito de liberdade de expressão defendido pela extrema-direita, que a Meta abraçou sem pudor hoje (dia 7), não diferencia práticas que configuram crimes de ódio do exercício, segundo os radicais ultraconservadores, da liberdade individual, que eles julgam absoluta e sem qualquer limite”, pontuou.
Da mesma forma reagiu o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes. “A nossa Justiça Eleitoral e o nosso Supremo Tribunal Federal já demonstraram que aqui é uma terra que tem lei. As redes sociais não são terras sem lei. No Brasil só continuarão a operar se respeitarem a legislação brasileira, independentemente de bravatas de dirigentes irresponsáveis das big techs”, salientou, na semana passada.
Outra reação veio da parte do Ministério Público Federal de São Paulo que, na quarta-feira (8), notificou a Meta para que, no prazo de 30 dias, responda se o programa de verificação de fatos será encerrado também no Brasil.