Não basta
por Claudio Gurgel
Não basta colocar um marqueteiro no Ministério da Comunicação, produzindo e veiculando peças publicitárias magníficas, para obter avaliação pública compatível do governo Lula. Creio que ninguém em sã consciência discorda disso. Mas não custa advertir, porque o óbvio nem sempre é óbvio.
Mais que advertir, vale a pena tentar identificar o que de fato é central nessa situação que tem sido uma perplexidade constante: por que o governo atual, apesar da movimentação relativamente exitosa da sua economia, continua tendo avaliações próximas do governo anterior, a despeito dos desastres de Bolsonaro e sua trupe?
Na última pesquisa Quaest, publicada em dezembro passado, 33% aprovaram e 31% desaprovaram o governo. Na economia, o País piorou nos últimos 12 meses para 40% dos brasileiros; apenas 27% acreditam que melhorou. No mesmo mês, em 2022, a mesma Quaest informava que Bolsonaro era aprovado por 36% e reprovado por 38% dos brasileiros. Para aumentar o espanto, no Datafolha, segundo o portal GI de 30/12/2022, Bolsonaro era aprovado por 39% e reprovado por 37% dos entrevistados. Iguais.
Não que a comunicação dispense melhores esforços. De fato, a divulgação dos méritos tem sido muito acanhada, para usar uma palavra quase neutra.
Dizemos avaliação compatível, considerando o crescimento do PIB de 3,5%, a queda do desemprego a 6,1% – menor taxa histórica -, a renda média do trabalho crescendo em quase 4%, a retomada da industrialização, a expansão de vendas da linha branca, dos automóveis, das máquinas e equipamentos e do comércio em geral, apesar da taxa de juros estagnante praticada pelo Banco Central.
Por que, então?
Na tentativa de identificar o que de fato é central, reconhecemos a inflação, ou mais precisamente, os preços altos, porém destacamos a política. Acima e além da má comunicação e dos preços altos, está a política.
A inflação
A inflação brasileira está contida, estabilizada, efetivamente. Mas isso significa que o patamar dos preços também não se altera, mantido nas alturas em que estava.
Nos alimentos, isso se verifica com oscilações constantes e o nível elevado em que estabilizaram-se os preços causa impacto profundamente negativo. Os alimentos são uma comunicação diária à população; uma comunicação orgânica, estrutural, familiar.
A inércia do governo, deixando ao Banco Central, com sua limitação técnica e má vontade política, o enfrentamento da inflação é um problema que se vem arrastando.
Em rigor, o Banco Central veio ajudando a aumentar os preços, porque usou e usa um remédio para inflação de demanda, no trato de uma inflação essencialmente de custos. Uma inflação da crise das cadeias de suprimento, abaladas e encarecidas por pandemia, guerras,“desastres” climáticos e apreciação do dólar, em face das incertezas crescentes.
Não devemos criar uma barreira entre inflação de custos e de demanda, ignorando a unidade dialética dos dois fenômenos. Mas há predominâncias a serem consideradas, para evitar o que nos ocorre, desde 2023: a forte subida dos juros como remédio, elevando a dívida pública e aumentando os custos de produção e comercialização.
Lula chegou a falar de estoque regulador, mas não foi adiante. Deveria ter ido, porque o estoque regulador é uma das mais importantes ferramentas de política econômica. Poderia buscar um pacto contra a alta dos preços, negociando melhor as desonerações e outras vantagens concedidas aos empresários, em troca de alguma moderação em seus preços. Incentivar as alianças com sindicados e associações, como a Central Única das Favelas, CUFA, para promover feiras e sacolões, com preços populares de alimentos. Algo, além de esperar soluções do BC, dependente do mercado financeiro e do receituário ortodoxo.
Mas, um posicionamento estratégico de manutenção, recuado, aparentemente intimidado, faz com que o governo se coloque com timidez de ginasiano diante do patronato.
Esse posicionamento não tem arrefecido as antipatias e hostilidades do chamado mercado, que, em rigor, é exclusivamente o mercado financeiro. A Quaest diz, na citada pesquisa de dezembro passado, que 90% desse mercado reprovam o governo. A reprovação tem crescido, constata ainda a pesquisa, e pode ser que aumente, digo eu, com a proximidade das eleições. De modo geral, não há surpresa nisso, porque a apuração do perfil dos eleitores de Lula, em 2022, já revelava essa antipatia.
O governo tem o que fazer, e deve fazer o que lhe cabe, contra a inflação, cobrando, mas não esperando muito do Galípolo. Medidas como as acima sugeridas não farão muita diferença na má querência do mercado financeiro, para quem, conforme ouvi de um operador, “quanto pior o Brasil, melhor”.
A política
Certamente que já estamos tratando de política quando propomos estoque regulador, articulação com a sociedade civil organizada e coisas do gênero.
Mas ao nos referimos à política como questão central e ação principal, muito acima e além da comunicação, estrito senso, queremos dizer que a avaliação do governo Lula não é fundamentalmente uma questão de saber ou não saber o que se passa e o que se faz.
Grande parte dos que o desaprovam sabe perfeitamente que a economia melhorou, ainda assim o desaprova. Trata-se de negar. Rejeitar, questionar, distorcer e inverter, recorrendo-se inclusive à mentira ou fake-news, antiga e potencializada arma política. Mas evidentemente que um bom percentual desses que negam não distorce, nem inverte. Recebe a fake-news, acolhe-a e passa adiante, por varias razões. Nem sempre, porém, estão impermeáveis a uma boa e verdadeira contrargumentação. Além disso, há os que genuinamente estão insatisfeitos, dentre eles setores progressistas, para quem o governo tem sido complacente com a classe dominante e deve aos trabalhadores o prometido revogaço trabalhista e previdenciário, dentre outras coisas.
As peças publicitárias que sairão do Ministério da Comunicação serão também assim recebidas. Sob o crivo da política, cuja eficácia aumentou, em face da politização geral que passou a expandir-se, na medida em que a extrema direita saía do armário, se assumindo e se expondo. É o que se chama de polarização.
Tudo acontece com os polos políticos presentes e determinantes. Há um crivo permanente nos atos e fatos que ocorrem no Brasil e no mundo; o crivo da política. Nunca se fez tanta luta de classes, como nos últimos tempos; tanto conflito ideológico, como na história presente, na exata proporção em que se negam as classes e a ideologia – aliás, usando-se seu pretenso fim como instrumento de sua afirmação.
Não é à toa que a perplexidade que vivemos foi, à semelhança, vivida pelos estadunidenses e o governo Biden. Suas estatísticas econômicas também foram boas, mas nada fez com que a maioria do eleitorado o aprovasse, menos ainda à sua candidata.
Recentemente, o cientista Miguel Nicolelis, em entrevista concedida a Luis Nassif, disse: “o que aconteceu nos Estados Unidos vai acontecer no Brasil, em 2026”. Referia-se ao processo que levou à derrota de Kamala Harris para Donald Trump. Os sujeitos e os predicados não são os mesmos, é verdade. Mas o que Nicolelis fez foi menos uma previsão e mais uma advertência. Uma economia razoável, uma avaliação ruim, com resultados eleitorais piores ainda, também podem acontecer aqui.
Se é a política a questão fundamental, muito além da comunicação, em sentido estrito, é preciso mais que um bom comunicador. É necessário fazer política, ação, argument-ação, aproxim-ação, rel-ação, permitam-me jogar com as palavras, ral-ação – agora, me desculpem a ousadia.
Enfim, é necessário que as lideranças políticas, os mandatários, os militantes, os dirigentes, os assessores, os aliados conscientes, os independentes preocupados saiam de seus espaços formais, burocráticos, seus gabinetes, suas salas de aula, suas sedes de sindicato e, organizados e informados (talvez pela comunicação, mas não só), se encontrem com seus representados nos locais de moradia, de trabalho e de estudo para fazer política, ação, argumentação, aproximação, relação social. Ralação, trabalho duro.
Nada que seja ignorado por todos esses entes citados. De 4 em 4 anos fazem quase isto na renovação do seus mandatos. Quase. É preciso mudar para mudar. Fazer essa política de modo constante, autêntico e sincero, destacando acertos e reconhecendo erros, dialogando com a arma da verdade, que no dizer de Lênin “é sempre revolucionária”.
Deixar para 2026, realmente pode ser tarde.
Concluindo
O governo, de tanto ouvir que seu problema é a comunicação, resolveu trocar o ministro e trazer um especialista. Ele vai fazer de cada ato, cada fato, cada vitória do governo uma peça publicitária. Vai funcionar. Mas não basta.
A grande bolha da oposição vai receber essas peças como uma peça – um teatro, uma encenação de marqueteiro. Vai falar aos seus seguidores que tudo não passa de mentiras.
Quem vai fazer a disputa da verdade, lado a lado, com os pobres e trabalhadores manuais, eleitores preferenciais de Lula, que recentemente não tiveram boas notícias, com a redução do crescimento do salário mínimo e cortes no BPC?
As redes sociais? A imprensa comercial? Os influencers progressistas?
Serão ouvidos pela bolha de direita? Merecem mais crédito que o pastor, o padre ou o rabino reacionário? Que o chefe de quadrilha? Que o vereador do PL?
Certamente que não.
Só a política, a ação constante e presencial, além de um posicionamento do governo mais leal aos seus eleitores, pode abrir alguma perspectiva de mudança nesse quadro de incertezas. E, entretanto, essa mudança é necessária, porque “política é como nuvem”, ensinava Magalhães Pinto, do alto de sua mineirice de longo curso. Os 31% podem virar 33% ou mais e os 33% bem menos, ao sabor dos ventos. Sem falar da precariedade do arranjo que sustenta o governo e seu projeto de reeleição.
O que pior pode acontecer é que se passe a esperar tanto, do Ministério da Comunicação, que nada se faça para baixar os preços e muito menos para elevar a luta política.
Aí, resta o Galípolo.
Claudio Gurgel é economista, cientista político e Professor Titular da Universidade Federal Fluminense, UFF.
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