Zezé nunca esteve aqui
por Plínio Gentil
Lindo Fernanda Torres premiada com o Globo de Ouro. Merecidíssimo por sua atuação em Ainda estou aqui e por fazer parte de um filme que resgata ponto importante da história brasileira, que gerações mais novas já não enxergam com nitidez.
Insana, como esperado, a pancadaria da direita, que, na falta de argumentos, reclama da situação do país – como se seus governos obscuros não tivessem contribuído para o alto custo de vida, a deterioração do sistema de saúde, o desemprego, a financeirização dos preços dos combustíveis, usados para pagar o parasitismo rentista. Só para lembrar mesmo como esse chororô não ofusca, nem poderia, um milímetro do brilho da atriz, dos outros protagonistas e de todos que trabalharam para que o filme acontecesse. Sem recursos da Lei Rouanet, diga-se de passagem, mas com financiadores de peso e trazendo créditos a nomes conhecidos da produção cinematográfico-televisiva desse porte.
Pois então, trata-se de uma hiperprodução, em quase todos os sentidos. Na recriação da época, no colorido dos cenários, nos figurinos, nos penteados. E também ao retratar a subjetividade de famílias de classe média alta, com seus hábitos e sutilezas. Pois é aí que o conjunto da obra imprime sua marca inconfundível, de um lado denunciando a violência da ditadura, de outro sugerindo padrões de comportamento. Só que estes, de tão perfeitos, perdem realidade. Naquela família todos são inteiramente felizes, embora o mundo em volta fosse um pesadelo. Ninguém briga com ninguém, love is in the air, há um casal exemplar e uma vida de platitudes. Ao perder verossimilhança, o filme projeta um perfil humano agradável ao padrão de sociedade do capitalismo brasileiro, que, se condena o terrorismo de estado, não se escandaliza com a desigualdade social, parece não percebê-la e jamais a denuncia. Deixa nas entrelinhas que é fruto das diferenças individuais, da inteligência e do esforço de cada qual – como nas novelas. Não devia ser este o caso da verdadeira família Paiva. O deputado Rubens não foi cassado, depois morto, por seu amor ao sistema. Mas a produção cinematográfica cuida de apagar esse traço daquela família que foi perseguida, viveu no exílio e decerto não pensava que um intercâmbio estudantil na Europa fosse a coisa mais importante a fazer.
Nisto é que entra Zezé. Para refrescar a memória, ela é, no filme, a empregada doméstica da família. Uma personagem apagada, discreta, silente, que habita um canto da casa. Ninguém sabe de onde veio, que história tem ou como foi parar ali. Nenhum relevo parece ter o trabalho que faz para que os moradores toquem suas vidas levemente. Estereótipo de doméstica, com um inevitável lenço à cabeça, que em 1971 já andava em desuso, Zezé definitivamente não importa. Em uma palavra, é a imagem que a produção narra como deve ser vista uma funcionária doméstica. Só faltou dizer que era uma “colaboradora”. Zezé assiste a tudo sem importar ao enredo se entende a engrenagem que torna possível o sequestro do patrão. Como se fosse naturalmente incapaz de compreender coisas – que ali eram básicas – como repressão política e conflito de classes. Zezé é invisível. E isto se dá com naturalidade. A naturalidade do modo que o mercado produtor desse nível de arte vê uma empregada doméstica. A mesma normalidade com que é tratada sua demissão quando a família começa a ter dificuldade financeira. O que houve com Zezé depois de perder o emprego? Conseguiu arranjar outro? Pôde continuar alimentando seus filhos? Zezé tinha filhos?
Como dito, para não deixar dúvida, o filme é excelente. Consegue empatia com o público, principalmente porque ele se reconhece naquela família de classe média. Mais por isto, talvez, do que por horror à ditadura. E são esses setores, mais ou menos intelectualizados da classe média, que vão ao cinema e formam opiniões. Mesmo que tais opiniões sejam em parte guiadas pelo viés ideológico da produção, é ótimo que se formem opiniões críticas ao arbítrio da ditadura brasileira, agora que tantos aloprados procuram reescrever a história e negá-la. Mas seria perfeito se o povo mesmo, aqueles 70 ou 80 por cento do Brasil que só fazem trabalhar, também tivesse personagens míticas com quem se identificar, ligadas, direta ou indiretamente, à luta democrática ou vitimadas pela repressão de um regime controlado pelo poder econômico.
Zezé é, sim, vítima da violência sofrida pela família Paiva. Mas a Zezé do filme nada diz, nada pensa. Zezé não conta. E ela não é vítima apenas por estar ali, naquele lugar e naquela hora. É vítima porque, tudo somado, foi sobre as classes populares e sobre outras Zezés que despencou a parte mais pesada da violência da ditadura. Foi sobre os sindicatos de trabalhadores, as organizações de camponeses, os funcionários públicos, as associações e os partidos que condenavam a exploração do trabalho. Porém relatos sobre o horror da ditadura contra o povo trabalhador quase não ganham visibilidade. Parece não ter havido violência contra ele. Parece que a ditadura empresarial-militar não veio para frear a conquista de direitos da população despossuída. Ou para assegurar o lucro privado na educação e nos transportes. E para impedir a reforma agrária, a reforma urbana. Para garantir a especulação imobiliária, que expulsa o pobre do centro das cidades. É como se, no cenário do filme, Zezé nunca tivesse existido… Na verdade, Zezé nunca esteve ali, nem em lugar nenhum.
Em países irmãos, também vítimas de ditaduras passadas, são mais frequentes e mais conhecidas produções artísticas que mostram a violência praticada contra o povo em geral, talvez por sua maior politização, que cria demanda por mitos populares, socialmente situados aquém da classe média, que já tem os seus. O filme é ótimo, principalmente por retornar a um tema que nossa Lei de Anistia, cuidadosamente mal interpretada, vai ajudando a ficar desbotado. Mas ao colocar Zezé em seu lugar e ao propor o perfil de uma classe média que não questiona nossas relações sociais, tão excludentes, perde a oportunidade de denunciar a estrutura opressiva do modelo vigente. Para o qual os acontecimentos reais, retratados no filme, são consequências naturais, encaixadas na engrenagem de um sistema que se nutre da superexploração do trabalho e da repartição quase nula de seu produto. Sim, OK, esta não era sua proposta mesmo, como não é a de produções desse porte. Ai de quem falar em luta de classes. Viva Zezé!
…………………………………………………..
Este artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP.
Plínio Gentil – Associado fundador do MP Transforma. Professor de Direitos Humanos na PUC-SP
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.
“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “