Entre a memória e a justiça: é preciso dar um jeito de findar o 8 de janeiro
por Danton Mello e Silva e Karen Beatriz Magalhães dos Santos
A primeira semana após o recesso iniciou com a premiação de Fernanda Torres no Globo de Ouro como melhor atriz pelo filme “Ainda Estou Aqui” de Walter Salles. A obra adaptou o livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, que retrata a história da família Paiva na época da ditadura militar no Brasil. Rubens Paiva foi sequestrado durante a Ditadura militar e, sua mulher, Eunice Paiva lutou 40 anos para saber a verdade sobre o desaparecimento de seu marido.
Ontem, dia 8 de janeiro de 2025, passaram-se dois anos do ataque às instituições democráticas na capital brasileira. Embora diversas matérias tenham sido escritas sobre o ocorrido, grande parte da população brasileira minimaliza os atos daquele janeiro de 2023, seja por desconhecimento do contexto, seja por um apoio anti-sistêmico aos autores dos crimes.
Ainda nessa semana, Camila Rocha escreveu no Caderno Política na Folha de São Paulo sobre a necessidade de contextualizar o fatídico dia 8 como uma tentativa de golpe, e não apenas como atos de vandalismo para que seja possível consolidar a memória nacional e não minimizar os ataques aos três poderes.
A memória nacional ainda é alvo de disputas narrativas. Obras como a de Walter Salles nos fazem rememorar partes importantes da história que foram esquecidas pelos mais velhos e não conhecidas pelos mais jovens, ora por uma mobilização real de apagar e revisionar esse passado recente ora por um desapreço pela história brasileira.
Nessa linha, tentando rememorar o dia 8 de janeiro de 2023 dando sua devida importância e não minimizando-o a mero vandalismo, é imperioso dar o contexto – anterior e dos fatos revelados posteriormente – daquele dia para que este seja lembrado como um ataque direto ao Estado Democrático de Direito e de conhecimento de todos os cidadãos brasileiros.
Ao analisar o Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) dos Atos de 8 de Janeiro de 2023, criada pelo Congresso Nacional através do Requerimento nº 1, de 2023, é possível entender o contexto anterior e contemporâneo aos ataques sistemáticos feitos naquele ano.
A insurreição daquele dia não fora repentina, mas sim premeditada. Entender que os atos não foram uma expressão de insatisfação popular, ou vandalismo do patrimônio público da União, mas uma conspiração articulada que contou com o apoio de agentes do alto escalão das Forças Armadas, financiamento de setores do agronegócio, corporações e organizações internacionais de extrema direita e participação das mídias sociais – principalmente das chamadas “Big Techs”, que deram vazão a guerra híbrida, psicológica e difamatória contra o sistema eleitoral[1]. Os antecedentes foram escancarados, seja pela propagação de desinformação nas mídias sociais, tentativas de descredibilização do processo eleitoral, deslegitimação das instituições democráticas, figuradas aqui nos três poderes, são exemplos das ações antecedentes àquele dia.
Revelações posteriores do Relatório da PF indicaram a participação ativa e passiva de militares na organização e omissão diante da gravidade dos fatos. Mais ainda, o envolvimento de Jair Bolsonaro, então ex-presidente, e do General Braga Neto – o primeiro general de quatro estrelas a ser preso no Brasil -, como líderes e arquitetos dessa conspiração, reforça a conexão direta entre os discursos golpistas e as ações de seus seguidores. Bolsonaro não apenas alimentou o sentimento de revolta em sua base, mas também se posicionou como o âmago dessa ameaça à ordem constitucional.
Além dos danos materiais causados aos edifícios históricos que representam a República, o ataque deixou marcas profundas e intangíveis no sistema democrático constitucional brasileiro. A confiança na estabilidade institucional foi abalada, revelando a necessidade de fortalecer os mecanismos de proteção contra ameaças futuras e reformas estruturais no Estado Brasileiro.
O Brasil, por outro lado, se encontra em uma encruzilhada histórica. Enquanto o Supremo Tribunal Federal (STF) e Tribunal Superior Eleitoral (TSE) avança na proteção do Estado Democrático de Direito, por meio de decisões e resoluções importantes, como a declaração da inelegibilidade de Jair Bolsonaro e as resoluções de combate à desinformação no período eleitoral, o Congresso Nacional, em oposição aos avanços institucionais, revela um movimento conservador que busca relativizar os crimes cometidos contra a democracia e absolver os culpados pela depredação dos três poderes.
Um retrato deste movimento é o projeto de lei[2] que concede anistia ampla, geral e irrestrita, proposta pelo deputado federal Major Vitor Hugo (PL), e impede a responsabilização dos envolvidos nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023 da responsabilização pelos crimes cometidos, reproduzindo, em forma e mérito, a Lei de Anistia de 1979. A proposta ameaça consolidar a impunidade para crimes contra democracia, produzir novas injustiças e relativização dos abusos e violações de direitos humanos cometidas, como as cometida por figuras como Rubens Paiva, Honestino Guimarães, Vladimir Herzog, Dilma Rousseff, Helenira Rezende, Zuzu Angel e milhares de outros torturados políticos da ditadura militar.
Ainda que as instituições tenham reagido com firmeza, o 8 de janeiro permanece como um lembrete de que a democracia exige vigilância constante. Os eventos daquele dia não podem ser tratados como um episódio isolado; eles refletem uma tensão contínua que precisa ser combatida com educação cívica, responsabilização dos agentes públicos envolvidos para fortalecimento do pacto democrático.
Lembrar o 8 de janeiro de 2023 como um ataque ao Estado Democrático de Direito é essencial para que episódios semelhantes nunca mais se repitam. Mais do que um dia de caos, foi um alerta sobre os perigos da desinformação, do autoritarismo e da radicalização política.
O encerramento do julgamento dos atos anti-democráticos e responsabilização de Jair Bolsonaro, principal autor e operador do plano de golpe frustrado, é imperativo para passar a limpo a história, e – pela primeira vez na história deste país – punir os responsáveis, reparar as vítimas e instituições democráticas.
Cabe a todos os brasileiros, em especial os estudantes de direito, não apenas preservar a memória desse dia, mas também atuar como defensores ativos da democracia, para que ela continue a ser o alicerce da sociedade brasileira. Sensibilizar as juventudes e a população da importância da democracia, dos limites à liberdade de expressão e fortalecimento da educação cívica para evitar a ascensão de regimes totalitários e fascistas.
Não obstante, no plano internacional, deve-se criar uma corrente de resistência democrática contra o avanço da extrema direita no mundo. Reformar as organizações multilaterais e o multilateralismo, redefinidos após Guerra Fria, para promoção global do desenvolvimento sustentável, compromisso com o combate à fome, pobreza e a desigualdade, limitação dos poderes das plataformas digitais são meios para que, de fato, haja uma contenção do avanço da extrema direita no mundo e no Brasil.
Por fim, sensibilizar e furar bolhas por meio da arte e cultura, como nos mostrou “Ainda Estou Aqui”, nos relembra a importância da democracia e da luta incessante pela memória, verdade e justiça no Brasil. Que violações de direitos humanos foram cometidas por militares e agentes do sistema de justiça do estado brasileiro. Apresentar a luta, através da dramaturgia, de Rubens Paiva, Helenira Rezende e tantos que apesar de mortos pelo regime,“ainda estão aqui”, em memória e referência, norteiam a luta por um país mais democrático e pela justiça de transição para punir torturadores, ditadores e violadores de direito8, somente assim, colocaremos fim ao ano de 1964 e ao 8 de Janeiro.
Referências
AGÊNCIA BRASIL. O que o Globo de Ouro de Fernanda Torres mostra sobre atos golpistas. Carta Capital, 2025. Disponível: https://www.cartacapital.com.br/politica/o-que-o-globo-de-ouro-de-fernanda-torres-mostra-sobre-atos-golpistas/. Acesso em: 8 jan. 2025.
CARTA CAPITAL. Quaest: Dois anos depois, maioria dos brasileiros segue condenando os ataques do 8 de Janeiro. Carta Capital, 2025. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/quaest-dois-anos-depois-maioria-dos-brasileiros-segue-condenando-os-ataques-do-8-de-janeiro/. Acesso em: 8 jan. 2025.
CONGRESSO NACIONAL. Relatório final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito dos Atos de 8 de Janeiro de 2023. Brasília, 2023. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/atividade/comissoes/comissao/2606/reuniao/12013/item/88870. Acesso em: 8 jan. 2025.
GIELOW, Igor. Datafolha: 65% acham que 8/1 foi vandalismo e 30%, tentativa de golpe. Folha de São Paulo, 2024. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/03/datafolha-65-acham-que-81-foi-vandalismo-e-30-tentativa-de-golpe.shtml. Acesso em: 8 jan. 2025.
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. RELATÓRIO N° 4546344/2024 2023.0050897-CGCINT/DIP/PF. Brasília, 2024. Disponível em: https://infograficos-est.valor.com.br/pdf/relatorio_final_pf_inquerito_tentativa_golpe__26112024.pdf. Acesso em: 8 jan. 2025.
PAIVA, Marcelo Rubens. Ainda estou aqui. Alfaguara, 2015.
ROCHA, Camila. 8 de janeiro precisa de contexto. Folha de São Paulo, 2025. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/camila-rocha/2025/01/8-de-janeiro-precisa-de-contexto.shtml. Acesso em: 8 jan. 2025.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. STF utiliza arte e diálogo para relembrar dois anos dos ataques de 8 de janeiro. STF, 2025. Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-utiliza-arte-e-dialogo-para-relembrar-2-anos-dos-ataques-de-8-de-janeiro/. Acesso em: 8 jan. 2025.
Hugo, Vitor (PL), Projeto de Lei nº 2.858/2022. Concede anistia a todos os que tenham participado de manifestações em qualquer lugar do território nacional do dia 30 de outubro de 2022 ao dia de entrada em vigor desta Lei, nas condições que especifica. Brasília: Câmara dos Deputados, 2025. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2339647.
[1] A superestrutura digital permitiu a fabricação e disseminação do sentimento de ódio e desprezo aos valores democráticos e republicanos, assim como a coordenação dos grupos de extrema direita à tentativa frustrada de golpe e ocupação da porteira dos quarteis.
[2] Hugo, Vitor (PL), Projeto de Lei nº 2.858/2022. Concede anistia a todos os que tenham participado de manifestações em qualquer lugar do território nacional do dia 30 de outubro de 2022 ao dia de entrada em vigor desta Lei, nas condições que especifica. Brasília: Câmara dos Deputados, 2025. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2339647.
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