Em Gravataí, município gaúcho da região metropolitana de Porto Alegre, Lúcifer está no centro de um acalorado debate. A controvérsia chegou aos tribunais, e o juiz Régis Pedrosa de Barros, da 4ª Vara Cível Especializada, determinou a interdição de um santuário para acolher os seguidores do “anjo caído do Céu” – aquele que, segundo a Bíblia, rebelou-se contra Deus e foi expulso do Paraíso. Em seu despacho, o magistrado afirmou que a decisão foi motivada pela ausência de alvará de funcionamento do templo. No entanto, o empresário Lucas Martins, também conhecido como mestre Lukas de Bará da Rua e líder da Nova Ordem de Lúcifer na Terra, alega ser vítima de intolerância religiosa.
Construído na zona rural de Gravataí, em um terreno de 50 mil metros quadrados, o santuário abriga uma estátua de Lúcifer, que alcança 5 metros de altura com o pedestal. Em 13 de agosto de 2024, data de sua inauguração, um oficial de Justiça, acompanhado por cinco viaturas da polícia, entregou um mandado judicial interditando o imóvel. Desde então, mestre Lukas tem travado uma insólita batalha nas salas e corredores da prefeitura de Gravataí, assim como nos gabinetes do fórum local.
O líder da Nova Ordem insiste que, por intolerância religiosa, a administração municipal nega-se a liberar o alvará, utilizando-se de diversas manobras burocráticas. Uma das exigências era a aprovação do projeto pelo Conselho Municipal do Povo de Terreiro. “Os servidores que integram o colegiado votaram contra, mas o projeto foi aprovado pela maioria”, recorda mestre Lukas. Pouco tempo depois, a prefeitura informou que o Conselho não estava devidamente homologado. “Ora, ele funcionava há dois anos, com reuniões mensais na sede da prefeitura. Só agora, ao analisar o meu processo, perceberam o erro? Estranho, não?”, ironiza.
A prefeitura de Gravataí (RS) tem criado entraves burocráticos para negar alvará, acusa mestre Lukas
Ainda de acordo com o empresário, o prefeito de Gravataí, Luiz Zaffalon, do PSDB, teria se manifestado contra a instalação do santuário, alegando que ficaria “ruim para a imagem da cidade” abrigar o santuário. Em nota enviada a CartaCapital, a assessoria de comunicação da prefeitura reafirma o que consta no despacho da 4ª Vara Cível: o templo não cumpre os requisitos formais e o pedido aguarda análise do Conselho Municipal do Povo de Terreiro, “a quem caberá à decisão de deferimento ou não”. Em relação à intolerância religiosa e à declaração do prefeito Zaffalon, nada comentou.
Fundada em 2022, a Nova Ordem está conectada à Quimbanda Independente, embora não pratique os rituais e tradições dessa seita de raízes afro-brasileiras. “Não seguimos a Bíblia e, para nós, Lúcifer é um Deus”, diz o mestre Lukas. Ele afirma que a imagem de Lúcifer foi demonizada pelo cristianismo, mas assegura que as pessoas o verão “com outros olhos” quando “conhecerem tudo o que ele tem a oferecer”.
O líder religioso explica que, na Nova Ordem, o primeiro grau de estudos é voltado ao autoconhecimento, para que “sejamos senhores de nós mesmos”. Lúcifer, por sua vez, é apresentado como o portador da luz do conhecimento. “Ele traz uma nova visão de mundo e mostra as inúmeras oportunidades que o universo nos oferece”, afirma.
Segundo mestre Lukas, a Igreja Católica demonizou a imagem de Lúcifer por interesses próprios. “Na Idade Média, vendiam indulgências. Pagava-se um valor para não ir para o inferno, onde um diabo terrível poderia te castigar.” Ele também critica as denominações evangélicas, especialmente as pentecostais, que, em sua opinião, se concentram mais em pregações contra o diabo do que nos ensinamentos de Jesus. “Por que isso? Usam o medo para atrair fiéis. Nós não trabalhamos com o medo, mas com o conhecimento, para que as pessoas possam distinguir o que é o bem e o que é o mal”.

Leitura. Lúcifer foi demonizado pelos cristãos por “conveniência”, afirma mestre Lukas – Imagem: Acervo Pessoal Lucas Martins
Cláudio de Oliveira Ribeiro, teólogo, escritor e pastor da Igreja Metodista, prefere não entrar em uma estéril discussão religiosa sobre Lúcifer e o que ele representa. Observa, porém, que a Constituição brasileira garante a todos os cidadãos a liberdade religiosa e de pensamento, além dos direitos de organização e reunião. “O que não pode ser tolerado são atentados aos direitos humanos”, afirma.
Já Luís Carlos Susin, religioso capuchinho, professor da PUC do Rio Grande do Sul e doutor em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma, pondera que muitos cristãos, evangélicos ou católicos, ficaram “emocionalmente afetados” com a instalação de um santuário dedicado ao culto de Lúcifer. “Tenho a sensação de que as autoridades temiam, e com boas razões, episódios de violência na região onde se pretende instalar o templo. As lideranças desse movimento precisam medir com prudência a capacidade de tolerância da população”, afirma o teólogo.
Por outro lado, acrescenta Susin, a sociedade também precisa aprender a respeitar o Estado laico e a pluralidade de crenças. “Não existe uma resposta simples, pronta, para este caso. Estamos lidando com uma complexidade que, no Brasil, tem características próprias, devido à matriz sincrética da religiosidade.” •
Publicado na edição n° 1344 de CartaCapital, em 15 de janeiro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Celeuma diabólica’