Que o Bolsa Família é transformador não há dúvida. A dignidade garantida pelo programa a milhões de famílias brasileiras que passaram a ter o mínimo necessário para sua subsistência é uma conquista histórica e humanitária. Além disso, o ganho econômico da iniciativa também é significativo. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o Ipea, cada real investido em programas de transferência de renda desse tipo gera quase 2 reais de incremento ao PIB brasileiro. Um novo fenômeno vem, porém, reduzindo os impactos positivos do Bolsa Família para os cidadãos em situação de vulnerabilidade: o aumento do gasto dos beneficiários em sites e aplicativos de apostas esportivas, as chamadas bets, o que prejudica a subsistência de seus integrantes e amplia o ciclo vicioso da pobreza.
Somente no mês de agosto, os inscritos no Bolsa Família gastaram mais de 3 bilhões de reais em apostas online, uma despesa média de 100 reais por família, segundo uma nota técnica do Banco Central. Os dados foram tão alarmantes que levaram o Ministro de Desenvolvimento Social, Wellington Dias, e o Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, a anunciarem a proibição dos pagamentos de apostas online com o cartão do programa. A medida foi implementada em outubro, aliada à restrição do uso de cartões de crédito nas bets. Uma ação no fundo ineficaz, uma vez que o Pix continuará disponível para apostas e jogos de azar. Além disso, o valor do benefício também pode ser sacado em espécie em qualquer agência da Caixa ou nas lotéricas.
O governo federal também prometeu monitorar as despesas dos inscritos no Bolsa Família com apostas online e realizar a troca de titularidade do beneficiário, caso se comprove seu endividamento extremo. No fundo, uma solução para enxugar gelo, pois não resolve a questão central. Depois de meses batendo cabeça, em dezembro o Supremo Tribunal Federal determinou que o Executivo tomasse medidas mais restritivas, recebendo como resposta da Advocacia-Geral da União que o governo não tem condições técnicas para impedir o uso de recursos do programa nas bets.
Em Maricá (RJ), a Mumbuca só pode ser usada no comércio local, fortalecendo o empreendedorismo e a economia da cidade
Mas existe, sim, uma alternativa para o problema: o pagamento do Bolsa Família por meio das moedas sociais, que já foram implantadas em diversas cidades do Brasil. Um exemplo é a Mumbuca de Maricá, município localizado a 60 quilômetros do Rio de Janeiro. Criada em 2013 durante o segundo governo de Washington Quaquá na cidade, a moeda só é aceita no perímetro municipal e por empresas credenciadas pelo banco comunitário responsável pela sua administração e emissão. É também o meio de pagamento de um programa de transferência de renda que começou inspirado no Bolsa Família, mas evoluiu para a Renda Básica de Cidadania. Nem 1 centavo dos recursos repassados é gasto nas bets, pois o benefício só pode ser utilizado no comércio local.
Somada a isso, a cobrança de taxas e tarifas dos cartões da moeda social, em vez de gerar receitas milionárias para os grandes bancos, financia uma política de juro zero, incentivando o empreendedorismo e diminuindo a inadimplência das famílias. Em Maricá, 93 mil moradores recebem o benefício, o equivalente a quase metade de sua população, de acordo com o último Censo do IBGE. A cidade vive um boom populacional motivado pelo êxito dos programas sociais implantados pelos governos de Quaquá e Fabiano Horta entre 2009 e 2024.
Maricá e outros sete municípios do Rio de Janeiro já contam com suas moedas sociais atreladas aos respectivos programas locais de transferência de renda. Outras três cidades, incluindo a capital fluminense, estão em fase de implementação, totalizando 11 localidades no estado. Em Sergipe, Indiaroba criou a sua moeda social, que também é utilizada para transações no comércio local. A experiência vem inspirando outras cidades nordestinas a seguir o mesmo caminho. A moeda social é o lastro de mais de 150 bancos comunitários espalhados por todo o território nacional. Essas instituições foram criadas e são comandadas por entidades da sociedade civil, e não possuem nenhum vínculo ou apoio de organismos estatais.
Além de fortalecer a economia local, o pagamento do Bolsa Família em moeda social resolveria também a preocupante questão de transferência de recursos do programa para as bets, pois o valor recebido pelos beneficiários não poderia ser utilizado em apostas ou jogos online. Valorizaria ainda centenas de bancos comunitários que incentivam o empreendedorismo e apoiam a economia solidária, fortalecendo a geração de renda e o desenvolvimento da economia local, ajudando a romper o ciclo de endividamento e miséria. A solução já existe e não é complicada. Só falta que o governo federal olhe para ela. •
*Ex-vice-prefeito de Maricá, ex-secretário de Economia Solidária de Maricá e atual secretário de Habitação do Rio de Janeiro.
Publicado na edição n° 1344 de CartaCapital, em 15 de janeiro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Antídoto seguro’