A recente repercussão do filme “Ainda Estou Aqui”, dirigido por Walter Salles, é um exemplo claro de como a política da frente ampla segue presente no cenário cultural e político brasileiro, sendo inclusive alinhada com os interesses do imperialismo. A obra, que aborda o drama familiar do ex-deputado Rubens Paiva, torturado e assassinado pela Ditadura Militar (1964-1985), foi amplamente promovida por setores que apoiaram a ditadura, como o banco Itaú e a Rede Globo, que na propaganda, hoje usam o pretexto de “defesa da democracia” para alavancar uma política que, na realidade, serve aos interesses dos responsáveis diretos, não apenas pela sustenção do regime de terror inaugurado com o golpe de 1964.
Essa parceria entre a direita tradicional e setores da esquerda reformista é, ao mesmo tempo, contraditória e reveladora: o filme não é um produto de combate real à Ditadura, mas uma peça de propaganda política travestida de arte.
A cerimônia de premiação, recheada de discursos emocionados, evidenciou ainda mais o caráter propagandístico do evento. Premiada com o Globo de Ouro por sua atuação, a atriz Fernanda Torres travou o seguinte diálogo com o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, que foi gravado e divulgado nas redes sociais, trazendo a seguinte revelação:
Fernanda Torres: “E a democracia merece esse filme!”
Lula: “E sobretudo isso acontecer pra você faltando dois dias para a gente fazer o ato em defesa da democracia.” (grifo nosso).
Fernanda Torres: “Exatamente. Em nome da Eunice Paiva, uma mulher defensora dos direitos humanos, Lula, é muito simbólico.”
Lula: “Eu quero ver se a gente consegue transformar o ano de 2025 em um ano de defesa da democracia, contra a extrema direita e do fascismo.”
Fernanda Torres: “Esse filme ensinou muito jovem a entender o que é viver em um Estado sem direitos civis. É exatamente isso.”
Lula: “Não poderia ter um momento melhor para o Brasil receber essa premiação.”
É evidente que o filme e sua recepção não são apenas um tributo ao passado, mas uma operação política contemporânea. Enquanto o imperialismo tenta disciplinar a extrema direita, o filme reforça os interesses desse setor da direita, refletindo um conflito que diz respeito à divisão no campo dos inimigos dos trabalhadores e que a esquerda, se tivesse a cabeça no lugar, jamais deveria tomar o partido de um dos lados, mas denunciar ambos. Não é coincidência que a obra tenha recebido tamanha atenção dos meios de comunicação e até mesmo do lobby cinematográfico internacional.
Conforme apontou Marcelo Auler, em artigo publicado no portal de esquerda Brasil 247 e intitulado Rubens Paiva: o que o filme não mostrou!:
“Ao optar por narrar a história do ex-deputado Rubens Beyrodt Paiva a partir do drama familiar de sua esposa, Maria Eunice Facciola Paiva, e dos cinco filhos do casal – Vera Silvia, Maria Eliana, Ana Lucia, Maria Beatriz e Marcelo –, o cineasta Walter Salles produziu um filme impactante, repleto de afeto e emoção. Deu visibilidade a um dos inúmeros crimes da ditadura civil-militar, que as novas gerações jamais tinham tomado conhecimento.
Porém, ao abrir mão do relato policial/criminal do episódio macabro, o filme deixou de revelar os bastidores de uma novela macabra. São informações da luta de muitos – não apenas seus familiares e amigos próximos – para desvendar as últimas 60 horas de vida do ex-deputado e os motivos pelos quais ele permanecerá como um ‘desaparecido político’. História que teve seu final revelado em 2014, 43 anos após sua morte em 21 de janeiro de 1971.”
A escolha de centrar o filme no drama psicológico da família Paiva, em vez de explorar a dimensão política e criminal dos crimes da Ditadura, revela muito sobre o propósito da obra. Não é uma coincidência que a história tenha sido abraçada pela Rede Globo, que historicamente apoiou o regime militar. Como destacou o presidente nacional do Partido da Causa Operária, Rui Costa Pimenta: “o prêmio de cinema é um evento corporativo. O que chama atenção é o radicalismo chique da esquerda, de repente são todos inimigos da Ditadura. […] É radicalismo consentido. A pessoa tem que lutar sem o aplauso da Rede Globo, e sem Globo de Ouro também.”
É evidente que o filme “Ainda Estou Aqui” reflete um tipo de “radicalismo chique”. Enquanto parte da esquerda celebra o feito como um marco na luta contra a Ditadura, ignora-se que as forças responsáveis por impulsionarem essa obra são as mesmas que apoiaram e se beneficiou do regime militar e dos golpes mais recentes, como o de 2016 e 2018. A propaganda é cuidadosamente moldada para parecer combativa, mas nunca ultrapassa os limites impostos pelos verdadeiros beneficiários, que é a frente ampla.
Não pode ser uma verdadeira obra artística dedicada a combater o fascismo uma produção apoiado por bancos e o monopólio golpista da Rede Globo. O filme não se aprofunda nos crimes da Ditadura porque não é outra coisa senão uma peça de propaganda para uma política que, se levada adiante, produzirá uma ditadura ainda pior do que a que “Ainda estamos aqui” retrata. Enquanto isso, as reais questões do Brasil seguem à margem, esquecidas entre discursos vazios e o brilho de premiações internacionais.