O Brasil chegou à marca de dois anos dos atos golpistas de 8 de Janeiro de 2023 com 371 condenados, mas ainda à espera da responsabilização de mentores e instigadores da tentativa de golpe. Está nas mãos do procurador-geral da República, Paulo Gonet, a oportunidade de denunciar Jair Bolsonaro (PL), Walter Braga Netto (PL), Augusto Heleno e outras figuras de destaque da conspiração de 2022. Enquanto isso, a extrema-direita busca emplacar uma anistia prévia – voltada, em especial, ao ex-presidente.

A iniciativa soa desesperada, mas não é inviável, dado o histórico brasileiro de perdoar militares envolvidos em tramas golpistas.

“Houve, em alguns casos, o início de inquéritos e eventuais indiciamentos, mas sempre culminaram em anistia, geralmente aprovada pelo Congresso”, lembra o historiador Carlos Fico, especialista no estudo da ditadura militar, a CartaCapital. “Infelizmente, essa é uma longa tradição brasileira.”

A Lei da Anistia, de 1979 (que o Supremo Tribunal Federal se negou a rever em 2010), desponta como o principal exemplo. Hoje, ironicamente, é a própria Corte o principal obstáculo para aqueles que desejam retomar a complacência com os quartéis.

Em um evento no Palácio do Planalto nesta terça-feira 8, o vice-presidente do STF, Edson Fachin, leu um discurso do presidente Luís Roberto Barroso, que destacou a importância de não esquecer os ataques de 2023. Entre os presentes estavam os ministros Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, dois dos mais vocais opositores à anistia.

Gilmar afirmou a CartaCapital, em dezembro, que o perdão estimularia a repetição de episódios como o de 8 de janeiro. Já Moraes declarou, no mês anterior, que “não há possibilidade de pacificação com anistia a criminosos”.

Embora haja uma forte reação institucional a um eventual perdão aos novos golpistas, contudo, Fico entende que o tema está longe de se encerrar.

Uma recente entrevista da futura presidente do Superior Tribunal Militar, Maria Elizabeth Rocha, ao jornal O Globo desta terça-feira parece confirmar a projeção do historiador. Ela considera “muito cedo para se falar em anistia” e defendeu aguardar as sentenças de todos os participantes da intentona antes de cogitar qualquer perdão.

Ainda assim, diz Fico, o País pode estar caminhando rumo a uma inédita responsabilização dos fardados por maquinações antidemocráticas. Dos 40 indiciados pela PF no chamado inquérito do golpe, 28 são militares. Entre eles, além de Bolsonaro, Braga Netto e Heleno, estão o ex-comandante da Marinha Almir Garnier, o ex-comandante do Exército Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira e o general Mário Fernandes.

Embora generais já tenham sido presos no passado, o ineditismo atual está no fato de que há um inquérito da Polícia Federal tramitando no STF, com iminente denúncia da Procuradoria-Geral da República.

Fico ressalta que o Brasil ainda não superou por completo o intervencionismo militar, embora o governo Bolsonaro tenha intensificado as tensões. Resolver o problema demandaria alterar o artigo 142 da Constituição, cuja redação frequentemente é usada de forma equivocada por bolsonaristas para defender intervenções militares.

Diz o artigo: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

“Essa expressão ‘garantia dos poderes constitucionais’ é interpretada equivocadamente pelos militares como uma espécie de licença para intervir na política como uma força tutelar”, enfatiza Fico. “É preciso que o Congresso Nacional aprove uma emenda constitucional. Infelizmente, não creio que o atual governo tenha forças para fazer essa iniciativa.”

No campo jurídico, o apelo da extrema-direita por uma anistia para Bolsonaro reflete a convicção de que Gonet denunciará o ex-presidente, avalia o advogado criminalista Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay.

Entre os condenados pelo STF por participação no 8 de Janeiro, 225 entram na categoria considerada grave, com penas que variam de três a 17 anos de prisão. Eles foram enquadrados em cinco crimes: tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado, associação criminosa e deterioração de patrimônio público.

“Daí eu imagino o desespero da defesa e dos futuros réus, porque sabem que em muito pouco tempo estarão condenados a penas maiores”, arrisca o advogado. “Se o cara que entrou no plenário do Supremo pegou 12 anos, cada um desses aí pegará de 20 anos para cima.”

Kakay acredita que a PGR não imputará todos esses crimes a Bolsonaro — ele não praticou, por exemplo, deterioração de patrimônio público. A PF, por sua vez, enquadrou o ex-capitão em organização criminosa, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado.

“A pena será extremamente diferenciada porque eles eram beneficiários, eram os mentores, eram as pessoas que organizaram essa essa tentativa de golpe.”

Há quase 15 anos, ao negar o pedido da Ordem dos Advogados do Brasil para rever a Lei da Anistia, o então presidente do STF,  Cezar Peluso, afirmou que “só uma sociedade superior qualificada pela consciência dos mais elevados sentimentos de humanidade é capaz de perdoar”. A denúncia a ser apresentada pela PGR deixará nas mãos dos ministros, mais uma vez, a decisão sobre anistiar ou responsabilizar os golpistas contemporâneos.

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Last Update: 08/01/2025