‘Ainda Estou Aqui’ e a cordial luta de classes brasileira

por Wilson Roberto Vieira Ferreira

Estamos acostumados (eu diria “treinados”) a considerar um filme apenas pelo seu conteúdo, ignorando a linguagem, o contexto e as relações sociais e de classe que envolvem a fabricação do produto cultural. É a necessidade de termos o olhar materialista histórico, coisa fora da moda na atualidade. Mas é essencial para entendermos o filme “Ainda Estou Aqui” (2024), que guarda paradoxos e ironias que revelam como a cordialidade marca a luta de classes brasileira: de um lado, um cineasta herdeiro de um banqueiro fiador e beneficiário do golpe militar de 1964; e do outro, a Globo – golpista de primeira hora em 1964 e num momento em que, através da plataforma Globoplay, co-produtora do filme, tenta ir além da TV aberta, de olho no mercado internacional. O campo progressista celebra o filme. Por supostamente proporcionar a oportunidade de contar a história da ditadura. Mas porque uma Sony Pictures e outras distribuidoras internacionais se interessaram pelo filme e não por outros sobre o mesmo tema? A resposta está no contexto da luta de classes e da linguagem internacional-popular esperada pelas distribuidoras.

Ainda Estou Aqui é o trabalho mais pessoal do cineasta Walter Salles, marcando seu retorno às telonas 12 anos depois de Na Estrada (2012). Salles conhecia a família Paiva, tendo feito amizade com a filha do meio Ana Lúcia (retratada no filme por Bárbara Luz) quando adolescente no Rio de Janeiro no início dos anos 1970.

Baseado nas memórias de 2015 de Marcelo Rubens Paiva, o filme traça os efeitos que o sequestro e assassinato sancionados pela ditadura militar 1971 do pai do autor, Rubens Paiva (Selton Mello), têm na família. Especialmente em sua esposa, Eunice (Fernanda Torres), que estava parcialmente inconsciente das atividades na resistência do marido Rubens, deputado trabalhista cassado pelo golpe militar de 1964. 

Ainda Estou Aqui figura as engrenagens repressivas da ditadura militar brasileira como um pano de fundo (a cena de Eunice na praia vendo caminhões do Exército passando na orla da praia carioca enquanto a família se diverte indiferente é emblemática), além de cenas em que apenas sugerem as relações de Rubens Paiva com a resistência clandestina. 

Isso porque a perspectiva do filme é permanecer firmemente alinhada no drama familiar de Eunice – sempre no fio da navalha entre a desesperada busca do marido desaparecido nos porões da repressão, tortura e desaparecimento das vítimas, e continuar mantendo a rotina da casa numa aparência de normalidade, criando seus cinco filhos Vera, Eliana, Marcelo, Ana Lúcia e Maria Beatriz.

É a partir desses pressupostos que o filme deve ser analisado: primeiro, como um produto – primeiro filme original Globoplay e distribuição multinacional pela Sony Pictures. 

Segundo, um filme lançado e repercutido (cuja premiação da atriz Fernanda Torres no Globo de Ouro é até aqui o ápice promocional do filme) num contexto político tão conveniente que parece até proposital – atos solenes pelos dois anos da tentativa de golpe por militares no 8/1, num momento em que a extrema-direita faz pressões pela anistia dos envolvidos no episódio. Principalmente, a anistia do ex-presidente, capitão da reserva e defensor da repressão e torturas da ditadura militar, Jair Bolsonaro, até aqui inelegível e sem cargo.

O contexto político que involuntariamente ajuda a promover a atualidade da produção de Walter Salles.

Ainda Estou Aqui vem às telas depois dos quatro anos da “corda esticada” do governo Bolsonaro vendendo diariamente a ameaça de uma possível intervenção militar (o “golpe dentro do golpe”) ou, após Lula ganhar a eleição em 2022, um verdadeiro golpe militar no melhor estilo “Old Scholl”. Sempre cantado em prosa e verso, desde que o filho Eduardo Bolsonaro falou, em 2018, que bastava um cabo e um soldado para fechar o STF.

Nesse contexto, principalmente para a esquerda, o filme traria uma mensagem urgente: nos manter alertas para evitar que aquela realidade dos anos de chumbo não volte mais.

Veremos adiante como, sobrepondo o filme como um produto desenhado para o mercado internacional (com todos os interesses mercadológicos da Globo) ao contexto que envolve as relações sociais de produção, resulta é uma série de ironias e paradoxos. Mas, principalmente, emerge questões sobre a luta de classes brasileira, revelando a profunda hipocrisia da elite brasileira – a cordialidade como o frágil curativo que não consegue dar conta das duas feridas psíquicas da Nação: e escravidão e o militarismo que fundou a própria República.

O Filme: a linguagem internacional-popular

Ainda Estou Aqui é faz parte de um esforço mercadológico da Globo em atrair as grandes distribuidoras de cinema e audiovisual internacionais.

Embora, ao longa da sua história, tenha alcançado relativo sucesso com suas telenovelas editadas e moduladas para diferentes países, o mercado internacional cinematográfico e audiovisual ainda é uma barreira para o grupo que, através da plataforma Globoplay, tenta se reinventar para além da TV aberta.

O filme foi formatado dentro daquilo que chamamos de linguagem internacional-popular: hoje para atrair o interesse das distribuidoras, o produto audiovisual de qualquer país deve ser formatado dentro de rígidas categorias abstratas da produção cultural mercadologicamente bem-sucedida – a adaptação do produto cultural às exigências de uma linguagem globalizada (fotogenia, estilização, signalização, estereotipagem, estandartização etc.).

Por exemplo, Ainda Estou Aqui segue um esquema narrativo abstrato que chamamos de “quebra-da-ordem-e-retorno-à-ordem”.  

O filme gasta meia hora para descrever a ordem idílica familiar da zona sul carioca. Abre com Eunice emergindo do mar, na praia, tendo o Corcovado ao fundo. Os filhos da família Paiva jogando vôlei na areia, cena de uma proverbial mesa de jantar, a unidade familiar, a bricolagem de pôsteres e discos, a perfeita reconstituição dos móveis da época, o escritório do engenheiro Rubens Paiva imerso em plantas e croquis etc.

Emergem sonhos da família em meio as festas: fazem planos para uma nova casa que estão construindo.

Mas paira sobre a perfeita dona de casa e o perfeito pai de família as sombras que rondam aquela ordem harmoniosa: caminhões do exército que cruzam a orla da praia e as rápidas conversas de Rubens Paiva com amigos que comentam o cenário de fechamento político do país.

Até o momento em que quatro capangas do Batalhão da Polícia do Exército invadem o lar e quebram a ordem empaticamente descrita no primeiro ato, levando Rubens Paiva num carro e Eunice e sua filha, encapuzados, no outro. Para averiguações, dizem. 

Mas sabemos que o destino foi selado e Eunice emerge como a protagonista do filme depois de 12 dias no cárcere ouvindo gritos de torturados em celas ao redor. Com a raiva e angústia contidas, ela luta para manter uma aparência de rotina diante dos filhos, enquanto busca informações sobre o marido desaparecido. A polícia sequer admite que Rubens Paiva foi preso.

E o filme termina com o restabelecimento da ordem, repetindo a mesma cena que abre o filme: a foto do ano da família Paiva, agora com Eunice idosa rodeada pelos filhos e netos. Depois da admissão legal da morte de Rubens Paiva, a volta de Eunice à faculdade para se tornar uma advogada ativista da causa indígena.

Estamos diante de um clichê narrativo abstrato: aqueles capangas poderiam ser substituídos por qualquer tipo de vilão: Fred Krueger, aliens, terroristas internacionais, mafiosos etc. O Mal que irrompe justamente após os planos e sonhos do casal Paiva ter se manifestado – como nos filmes hollywoodianos, a primeira flecha dos índios atingirá sempre aquele cowboy que na cena anterior ousou falar de seus sonhos e planos.

Outro exemplo é o filtro amarelo persistente na fotografia – uma das exceções é a sequência do interrogatório e a prisão de Eunice, em azul e preto.

  Sabemos que o tom amarelado é um efeito cinematográfico intencional para filmes hollyoodianos ambientados no México ou América Latina. Um estereótipo visual para evocar uma sensação de calor, aridez ou um clima “exótico” – o estereótipo norte-americano para a AL com paisagens áridas e quentes. O tom amarelado também sugere um contraste com os tons mais neutros ou azulados, como são quase sempre representados os Estados Unidos e Europa. O amarelo como o signo de um clima sujo, perigoso ou “fora da lei”. 

O efeito dessa linguagem internacional-popular é a uma neutralização ou esvaziamento do conteúdo – da denúncia para o mundo sobre os horrores da ditadura militar brasileira e como a repressão política impactou o cotidiano de uma família real, a narrativa esquemática reduz todo o peso político a um drama pessoal e uma história de persistência e superação individual. 

Em outras palavras, a história ganha uma universalidade de mercado. E perde o impacto do horror do arbítrio e da paranoia coletiva que tomou conta de uma nação – para os americanos, nada mais do que um drama de algum lugar abaixo do Equador.

Para encerrar esse tópico, é marcante a diferença de classe social na utilização da linguagem para tratar das mazelas sociais. Nas produções fílmicas e audiovisuais sobre vítimas da violência (política ou social) das classes médias, há uma opção pelo viés da sensibilidade, do afeto, da leveza e da emoção pungente. 

A coisa muda de figura quando a vítima está na favela ou bairros periféricos: é bala, bomba e porrada! Thrillers de ação com trilhas musicais pesadas, gente suada de ódio e medo, além da gritaria. Como, por ex., em produções audiovisuais como a atual série Globoplay Arcanjo Renegado ou o filme premiado Cidade de Deus.

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Last Update: 08/01/2025