Estamos aqui dando um jeito, meu amigo!

por Ana Laura Prates

Seria a primeira segunda braba do ano de 2025, mas é dia 06 de janeiro, dia de Reis na tradição cristã. Para mim, um dia mais do que especial: o dia do nascimento da minha filha Luiza, e é a ela a quem dedico esse escrito, pelo que se transmite entre gerações, e pelo que vale a pena lutar. Seria aquela segunda amanhecida de um domingo de dormir cedo, para começar a enfrentar o ano. Mas quem dormiu com um barulho desses? Um Globo de Ouro com gosto de Olimpíadas e final da Copa do Mundo, porque nossa Fernandinha concorria – e ganharia – ao prêmio de melhor atriz por sua atuação no filme “Ainda estou aqui” de Walter Salles Jr. Mas não é futebol, é cinema, bicho! O cinema brasileiro, tão competente, criativo e resistente, e tão desvalorizado, e mesmo cruelmente atacado nos anos distópicos que atravessamos recentemente. Os obscurantistas não são tolos, eles sabem a força da arte contra a opressão, o medo e o esquecimento.

O prêmio de Fernanda Torres tem tantas, mas tantas camadas, que fica difícil escolher por onde começar. Eu diria que é a síntese do que a canção “Aos nossos filhos” de Ivan Lins, eternizada pela voz de Elis Regina, nos diz: “quando colherem os frutos, digam o gosto pra mim”. Ontem, colhemos os frutos. Nas palavras do jovem escritor francês Eduard Louis: escrever é um modo de vingar nossos pais, vingá-los do silêncio, da cara amarrada, da falta de abraço, da falta de espaço, porque “os dias eram assim”. Nossa geração, a geração de Fernanda, a minha geração, passou a infância sob a sombra da ditadura e suas consequências nefastas nas vidas de nossos pais e/ou seus amigos. É certo que grande parte da população alienada na ilusão do “milagre brasileiro” não sabia – ou não queria saber – dos horrores que estavam acontecendo no Brasil.

Nosso país nunca apurou os crimes daquele período, não julgou, não puniu, não ensinou às novas gerações, não fez história. Com exceção de algumas iniciativas fundamentais como a Comissão da verdade e a Comissão de mortos e desaparecidos, as atrocidades da ditadura passaram incólumes. E, como sabemos, o que não é elaborado e simbolizado, está fadado a retornar e a se repetir, como tem sido constatado na apuração das tentativas de golpe entre 2022 e 2023 e também nos patéticos pedidos recentes de anistia.

Na entrevista que fiz com Eugênia Gonzaga e Vera Paiva no meu programa Ouvindo Vozes da TV GGN, ambas foram enfáticas em afirmar que os crimes e atrocidades cometidos durante a ditadura seguem se repetindo no Brasil com a população indígena, com indigenistas, com a população preta e periférica de nosso país. A ditadura terminou em alguns CEPs, e para alguns corpos, para outros não, e por isso segue sendo uma grande ameaça real para alguns, e virtual para todos.

Quando li o livro de Marcelo Rubens Paiva, “Ainda estou aqui”, fiquei muito impressionada com sua sutileza e habilidade para que, mais além do relato e da narrativa, houvesse transmissão. Como psicanalista, fico sempre atenta à questão do apagamento da memória, seus rastros, restos e sucatas – para usar a expressão de Walter Benjamim. Por conta da minha história de vida, como filha de um homem perseguido pela ditadura que, entretanto, sobreviveu e ainda está aqui, com 90 anos, eu conhecia a história de Rubens Paiva, assim como a de Herzog e tantas outras e outros, desde criança.

Mas o inesperado no livro, é que Marcelo não fala diretamente de Rubens, mas de Eunice. Eu havia sido aluna de Vera na USP, acompanhara o trabalho de Marcelo desde a adolescência, mas pouco sabia da vida de Eunice, a não ser quando do episódio da conquista da certidão de óbito do marido, que celebrei vivamente. O livro de Marcelo me tocou muito pela sutileza de escrevê-lo quando sua mãe estava perdendo a memória em razão do Alzheimer. Trata-se, portanto, de um livro que transcende a história particular daquela família, para alcançar um índice de sobrevivência do que nos humaniza: a memória, a escrita e sua relação com a verdade possível, a escrita do nome na lápide (como em Antígona), o que se transmite entre gerações. É um livro sobre resistir, insistir e seguir aqui porque, afinal, é preciso dar um jeito.

Daí meu receio, até certa resistência, eu diria, a assistir o filme. Demorei. Conhecia de cor e salteado a história, havia sido tocada pelo modo como Marcelo passou a esperança ativa das Marias e Clarices quem têm fé na vida, mulheres que sempre dão um jeito. O que mais eu poderia ver, além, é claro, da alegria autossuficiente que sentimos em uma sessão de cinema bem realizado? Fui, confesso, com medo da decepção, temendo e tremendo. Na verdade, agora me dou conta, o medo era outro; eu sabia que o cinema daria corpo, voz e vida às personagens. Sabia que eram Walter Salles, Fernanda Torres e Selton Mello. No fundo, eu tinha medo da minha reação e das dores que o filme ativaria em mim. Não foi diferente. Não foi cinema bem realizado, foi bom cinema, o melhor. Fui jogada em um tal estado de angústia que, ao sair do cinema não conseguia respirar.

Eu já assisti a muitos filmes sobre várias ditaduras, inclusive a nossa, inclusive sobre as que seguem acontecendo nos guetos e becos do mundo, inclusive os nossos. Sempre saio comovida e agradecida do cinema. Mas “Ainda estou aqui” me tirou o ar, talvez pelo meu momento de vida, talvez pelo momento histórico, talvez por ver minha geração – que sempre julguei covarde – fazendo história, talvez porque há poucos meses havia assistido Fernanda Montenegro lendo Simone de Beauvoir no Parque do Ibirapuera, e ali também vi a emoção de Fernanda Torres a acompanhando. Talvez pelos meus filhos, para que possam finalmente dizer o gosto para mim, para nós.

Saindo do cinema, desatordoada, atônita e sufocada, recebo a mensagem da minha filha que me salvou: mãe, venham para o sambinha! Fomos. Sim, o sambinha. Somos o país do samba e do futebol. Mais cedo ou mais tarde seremos novamente campeões na Copa do Mundo. Nas Olimpíadas, temos Rebeca. E temos Fernandas e cinema e literatura, e teatro e arte. Sim, nós estamos dando um jeito, meu amigo. Nós estaremos sempre aqui.

Ana Laura Prates é dona de casa e mãe, psicanalista, escritora e editora. É autora, dentre outros de “Feminilidade e experiência psicanalítica” e “Da fantasia de infância ao infantil na fantasia” (Larvatus Prodeo Editora). Doutora pela USP, Pós-Doutora pela UERJ e Pesquisadora da UNICAMP. É membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano e do coletivo Psicanalistas Unidos pela Democracia (PUD)

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Last Update: 06/01/2025