Para o racismo, não há ano novo, por Juliana Brandão

Por Juliana Brandão

No Fonte Segura

Frente a uma retrospectiva que se repete, não há ano novo. O enfrentamento ao racismo passa pelo reconhecimento de sua existência, mas a isso não se resume

Doutora em Direitos Humanos pela USP e pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Escrevo no presente, mas de olho no que passou em 2024. Sim, é fato que, embora a democracia racial teime em subsistir, é também verdade que a resistência e a denúncia ao racismo têm pedido passagem. No último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, vimos a elevação da quantidade de casos de racismo em 77,9%, com o registro de mais de 11 mil casos. No entanto, ainda não conseguimos, neste ano que se encerra, superar as palavras-chave prisão, violência e morte, quando lidamos com a realidade da população negra brasileira. E estamos bem mal acostumados ao quadro que orbita em torno desse contexto.

Segue sendo negra a massa carcerária que compôs 69,1% da população prisional no Brasil. Somando vulnerabilidades que materializam a exclusão social, chegamos ao contrassenso – a “inclusão prisional” é a que fez lembrar que existe cidadania e que direitos não são privilégios. Infelizmente, só vendo a exceção atrás das grades é que se tem oportunidade para a discussão sobre a garantia do acesso à justiça, com ampla defesa e devido processo legal, para quem quer que seja.

Segue sendo negra a maioria dos adolescentes que se encontram cumprindo medida sócio-educativa em meio fechado, perfazendo 63,8%. E nesses parênteses, que podem durar até três anos, naturalizamos a institucionalização e os potenciais efeitos futuros dela.

Seguem sendo negras as meninas estupradas e com a infância interrompida. São as mesmas que ainda poderão ter que suportar uma gestação, sob o argumento de que a vida começa com a concepção. Na discussão que ganhou corpo no Legislativo e se propõs a deslegitimar o aborto legal, tanto se desconsiderou totalmente a garantia dos direitos sexuais e reprodutivos como a evidência de que o perfil das vítimas de estupro é composto por 61% de meninas de até 13 anos e 52% de meninas negras.

Seguem sendo negras as mulheres vítimas de feminicídio, representando 63,6% dos casos, o que reverbera também nas vítimas indiretas.

Segue sendo negro o corpo que a bala perdida sempre encontra, o mesmo que também pode ser jogado da ponte e aquele que pode morrer, sentado, à espera de atendimento médico.

Em um capítulo à parte, seguimos com o sistema de justiça e o sistema de segurança pública alimentando a ideia de um Estado incapaz de responder efetivamente a esse quadro. Vistos com desconfiança, pavimentam o esvaziamento da legitimidade do espaço público.

Frente a uma retrospectiva que se repete, não há ano novo. O enfrentamento ao racismo passa pelo reconhecimento de sua existência, mas a isso não se resume. Medidas práticas que coloquem em evidência a construção de relações pautadas pela igualdade só se sustentam se o trânsito pelas estruturas estiver verdadeiramente franqueado a todas e todos.

Os aportes teóricos que referenciam a produção científica de pesquisadoras negras e pesquisadores negros, como também os diálogos interinstitucionais, precisam estar permeáveis à presença de pessoas negras, com suas ideias e elaborações. É necessário permitir que o debate se capilarize, dando espaço para que a equidade racial, as ações afirmativas e o antirracismo façam sentido, para além dos círculos das pessoas negras. Por isso, ressignificar e politizar o debate racial, para que outro campo semântico possa ocupar nosso imaginário coletivo, parece um dos tantos passos que precisamos dar. O ano de 2025 aí está para que possamos exercitar nossa capacidade de inovar. Axé!

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