Matéria do Haaretz revela que não é só em Israel! Países como a Índia, a Polônia e, claro, o Brasil, a direita populista já nem sequer finge acreditar em democracia


“Prestem atenção, senhores, ao que estou dizendo. Imaginem que há um grupo de pessoas que quer queimar um pergaminho da Torá. E há pessoas do submundo criminal que querem resgatar o pergaminho da Torá. Vocês os ajudariam – essas pessoas do submundo – ou diriam: ‘Não, essas pessoas são do submundo’? Bem, respondam-me. É claro que vocês os ajudariam. As pessoas do submundo vão salvar a Torá de ser queimada. Digamos – todos do Shas são pessoas do submundo. Mas no Knesset, eles estão se levantando contra todos aqueles que querem atacar a Torá, que odeiam a Torá.”

Essas foram as palavras do rabino Daniel Zer, uma figura importante no movimento de Teshuvá (arrependimento religioso), antes das eleições de abril de 2019, a primeira de uma série de eleições que levariam à atual crise política no país. Seu sermão inflamado foi publicado na plataforma oficial online do movimento Shas, nada menos.

Cinco anos adicionais de crise política se passaram até que Amiram Ben Zaken, membro do Comitê Central do Likud e vereador municipal de Ashdod, invadisse a base das Forças de Defesa de Israel em Sde Teiman – como parte de uma invasão em massa, em protesto contra a investigação aberta contra reservistas suspeitos de abusar de um prisioneiro palestino ali – e apresentasse uma equação semelhante: “Os investigadores vêm em nome do Supremo Tribunal de Justiça, nós viemos em nome de Deus.”

O rabino Zer, do Shas, e Ben Zaken, do Likud, não estão sozinhos: Benjamin Netanyahu contra o judiciário, a direita contra o procurador-geral, e indivíduos mascarados invadindo bases do exército – o populismo de direita lançou um ataque total contra o Estado de Direito em Israel. Muitos eleitores de direita, que nunca educariam seus filhos para roubar ou mentir, veem essas tendências com indiferença, alguns com apoio entusiástico.

As análises populares que tentam explicar esse fenômeno citam termos como “culto à personalidade”, “polarização social” e “mídias sociais”. Mas isso não é apenas uma questão envolvendo uma certa personalidade política, nem um sintoma da era da internet: o populismo contemporâneo é um empreendimento ideologicamente fundamentado que realmente repousa em bases tradicionalistas e santifica uma guerra (quase) pré-moderna – em apoio à supremacia da comunidade e dos setores sociais sobre a arena cívica, e à supremacia da lei tribal e religiosa sobre a lei secular do Estado. É uma guerra que gira em torno de uma questão social que parece apenas teórica: é moral infringir a lei? E, se sim, qual lei?

‘Dois públicos’

Israel é comumente descrito como um país tribal. Mas como seu tribalismo se relaciona com a crise político-constitucional em que seus cidadãos estão imersos hoje? O falecido cientista político e sociólogo nigeriano Peter Ekeh explorou a conexão entre o legado tribal e colonial da África e as crises de soberania e corrupção surgidas nos estados africanos independentes. Para explicar essa conexão, ele desenvolveu a teoria dos “dois públicos”.

O professor Ekeh observou que, ao contrário dos estados europeus, que se desenvolveram organicamente a partir das sociedades que governavam, a estrutura governamental nos países africanos foi amplamente moldada e controlada por grupos minoritários: primeiro pelos governantes coloniais, depois por uma estreita elite burguesa africana. Assim, as grandes comunidades tradicionais (ou tribais), que não participaram da criação ou operação dos aparelhos do Estado, não se percebiam como ligadas ou responsáveis por ele. Essa desconexão conceitual persistiu após esses países conquistarem a independência e, mesmo quando alguns grupos tribais foram integrados ao governo, ainda sentiam o Estado como algo distante.

As circunstâncias históricas dessa desconexão são surpreendentemente semelhantes às que afetam Israel hoje. Primeiro, a desconexão foi reforçada por um legado de domínio por um império estrangeiro: as tradições tribais e valores não foram absorvidos na estrutura política, e o império foi percebido como um corpo vasto e onipotente.

Do ponto de vista das comunidades africanas, mesmo que, como súditos coloniais, não pagassem impostos ou servissem no exército, o Império Britânico não entraria em colapso. Havia uma sensação de que o Estado era remoto, forte – e não lhes pertencia.

Percepções semelhantes prevalecem em Israel, não necessariamente por causa do domínio britânico. O professor Ehud Sprinzak, que na década de 1980 pesquisou a atitude em relação à lei na sociedade israelense, caracterizou a sociedade israelense já naquela época como sendo marcada por um “ilegalismo” sistemático e um desrespeito pelas leis do Estado. Ele atribuiu essa abordagem às tradições do shtetl judeu europeu, ao baksheesh do Oriente Médio – ou seja, corrupção política e suborno – e até ao socialismo dos movimentos trabalhistas do período pré-Estado.

No entanto, Ekeh sustentou que a desconexão que ele descreveu é um produto não apenas do colonialismo, mas também da era da independência. Com a retirada dos impérios, os aparelhos estatais foram moldados e liderados, na África, por uma camada social estreita, secular e moderna em caráter, em oposição a outros grupos e comunidades mais tradicionalistas. A nova camada de líderes, que se percebia como responsável pela criação do Estado, adotou uma abordagem ideológica que enfatizava o passado “primitivo” desses grupos e a necessidade de descartá-lo.

As comunidades tradicionais eram vistas como não contribuindo o suficiente para o Estado e como não qualificadas para assumir posições de liderança enquanto não passassem por um processo de modernização. Isso não é muito diferente do relacionamento entre o estabelecimento secular-ashkenazi trabalhista em Israel e outros grupos israelenses mais orientados pela tradição.

Fugindo da responsabilidade

O legado dos impérios globais e da independência, bem como o próprio legado do shtetl e do partido Mapai, cristalizaram-se em uma espécie de desconexão social-moral. Segundo Ekeh, isso se manifesta entre diferentes grupos em uma mentalidade que distingue dois tipos de “públicos”: um público cívico e, em contraste, o público primordial.

O público cívico abrange o Estado e seus aparelhos – onde alguém é cidadão, servidor público ou representante eleito. O público primordial, no entanto, constitui o grupo social central dentro do qual uma pessoa foi criada, que concentra a maioria de seus laços sociais e no qual uma pessoa está sujeita às normas e valores do coletivo.

Nos países africanos, argumentou Ekeh, os grupos que se percebiam como desconectados do Estado desenvolveram a ideia de que apenas dentro do público primordial – ou seja,

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Last Update: 27/12/2024