O aparelho de televisão, ao lado do automóvel, foi o grande ícone da cultura material do capitalismo na segunda metade do século XX e daquilo que Edgard Morin chamou de cultura de massa. O broadcasting, forma cultural do capitalismo tardio, nos termos de Raymond Williams, constituía o núcleo dinâmico da Indústria Cultural, extensão, na definição de Adorno e Horkheimer, da dominação capitalista para além dos muros da fábrica, terreno da exploração do trabalho, cujos mecanismos Marx desvendara.

Seguindo essas e outras pistas – destaque-se a problemática da reprodutibilidade da obra de arte, de Walter ­Benjamin –, as diferentes escolas da Economia Política da Comunicação e da Cultura trataram de estudar a Indústria Cultural como indústria, na perspectiva da crítica da economia política e utilizando ainda ferramentas da economia industrial e da análise das estruturas de mercado. Estávamos no auge da expansão do conjunto das indústrias culturais como sistema global de cultura, tendo a televisão como eixo dinâmico, no plano nacional, enquanto os oligopólios fonográfico e cinematográfico garantiam a coerência daquela cultura internacional popular, nos termos de Renato Ortiz, que consolidava, no plano da produção simbólica, a hegemonia norte-americana, espelhada no american way of life. Na periferia, o modelo era replicado, adaptando-se às realidades locais. A TV Globo dos anos 1970 foi um exemplo de sucesso na adaptação da cultura brasileira às determinações da forma mercadoria.

Nesse momento, tanto as telecomunicações quanto a radiodifusão funcionavam, em nível mundial, sob o conceito de soberania nacional, o que vinculava os interesses capitalistas dos concessionários – onde o sistema não era diretamente estatal, como na maioria dos países europeus – àqueles do Estado nacional. No caso brasileiro, essa vinculação favorecia a aliança do empresariado nacional com seus sócios estrangeiros, sob os auspícios e o comando do regime militar. O fim da ditadura assistirá ao início das profundas transformações que levarão, não por ação política das novas elites no poder, mas por mudanças na trajetória tecnológica orquestradas no centro, à ruptura do conjunto do sistema global de cultura.

A retomada da hegemonia norte-americana, abalada pela desvalorização do dólar e pelos debates sobre sua substituição no papel de moeda de reserva exercido ao longo dos 30 anos gloriosos do pós-guerra, não se limitou ao plano das políticas macroeconômica e militar, analisadas em texto célebre pela professora Maria da Conceição Tavares, mas avançaram, no governo Bill Clinton, para o da política industrial, com o projeto das infraestruturas globais da informação, a digitalização geral do mundo e a convergência tecnológica entre telecomunicações, informática e audiovisual. Tudo isso é resultado, do ponto de vista tecnológico, da revolução microeletrônica e, do ponto de vista das relações de produção, da Terceira Revolução Industrial e a subsunção do trabalho intelectual, científico, cultural, como venho insistindo desde o início dos anos 2000.

Os últimos 50 anos presenciaram mudanças profundas no mercado de televisão

Frutos desses desenvolvimentos, os últimos 50 anos presenciaram mudanças profundas no mercado de televisão, primeiro com a tevê segmentada, via cabo ou satélite, depois com a tevê digital, uma tentativa de fazer frente ao avanço da internet, e agora com a chamada tevê 3.0, novo intento de recuperação da iniciativa pública sobre um objeto que, neste momento, se encontra, em decorrência das políticas neoliberais e da reestruturação produtiva, amplamente privatizado e submetido ao controle do capital internacional. Foram marcos fundamentais desse movimento, a reestruturação das telecomunicações em nível mundial, a privatização da internet em 1995 nos Estados Unidos e o processo de concentração que se seguiu à crise de 2000 das empresas de tecnologia, constituindo o oligopólio global das grandes plataformas digitais que governam hoje a rede mundial.

Nesse processo, o conceito de soberania nacional é completamente esquecido, tanto nas telecomunicações quanto na televisão, ao passo que os mecanismos da publicidade e da propaganda foram se embaralhando, como é natural em situações de crise sistêmica geral como a que vivemos. No novo arranjo, a informação, a comunicação e os dados adquirem uma relevância inaudita. Se a televisão, nessas condições, perde o papel de articulador do conjunto, o audiovisual – a pluri-TV, como dizia Valério Brittos – permanece no centro das disputas por corações e mentes, ao lado do novo ícone da cultura capitalista, o smartphone, enquanto o controle das redes e plataformas digitais apresenta-se como elemento essencial para a retomada da autonomia cultural, condição básica para o desenvolvimento, como insistia Celso Furtado.

Se a hegemonia cultural inglesa se organizava em torno da velha esfera pública burguesa, crítica e restrita, como apontou Habermas, alimentada pelos jornais políticos e as agências de notícias, a norte-americana constituiu-se à base da circulação não apenas da informação jornalística e do debate público, mas, fundamentalmente, pela distribuição massiva de produtos de ficção e formas industrializadas de entretenimento. Se, nesse particular, a hegemonia norte-americana parece ainda inabalada, é lícito especular sobre as novas condições que estão postas num momento de acirrada disputa geopolítica.

A novidade trazida pela internet é a interatividade, atributo antigo dos sistemas de comunicação de massa, desde o rádio, que se apresenta agora incontornável, como necessidade posta pelo próprio modelo de negócio das redes e plataformas digitais. Esse é o fundamento de todo o medo e a esperança trazidos pelo ingresso efetivo, finalmente, das massas não proprietárias e não instruídas na esfera pública burguesa habermasiana. •


*Professor da Universidade Federal de Sergipe. O autor agradece à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo pelo apoio ao projeto “Governança Econômica das Redes Digitais”

Publicado na edição n° 1343 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O futuro da tevê’

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Last Update: 26/12/2024