Albert Camus, autor do clássico A Peste, tomava sua refeição em um restaurante do Quartier Latin, quando foi informado de sua escolha para o Prêmio Nobel de Literatura de 1957. M.M. Owen conta que uma semana mais tarde, Camus foi entrevistado pela televisão francesa. O escritor e seu entrevistador, contudo, não estavam sentados em um estúdio confortável. Estavam no estádio Parc des Princes, em meio a uma multidão de 35 mil torcedores, assistindo a uma partida entre o Racing Club de Paris e o Mônaco.
Leniência não é um benefício que os torcedores do Jogo Bonito concedem habitualmente aos atletas. Escritor uruguaio que cuidou das Veias Abertas da América Latina, Eduardo Galeano era um apaixonado pela bola correndo nos gramados.
Em seu livro O Futebol Entre o Sol e a Sombra, Galeano narra o crepúsculo dos deuses dos estádios. “A bola o procura, o reconhece, precisa dele. No peito de seu pé, ela descansa e se embala. Ele lhe dá brilho e a faz falar, e, nesse diálogo entre os dois, milhões de mudos conversam. Os zés-ninguém, os condenados a ser para sempre ninguém, podem sentir-se alguém por um momento, por obra e graça desses passes devolvidos num toque, essas fintas que desenham zês na grama, esses golaços de calcanhar ou de bicicleta: quando ele joga, o time tem doze jogadores.”
— Doze? Tem quinze! Vinte!
A bola ri, radiante, no ar. Ele a amortece, a adormece, diz galanteios, dança com ela, e vendo essas coisas nunca vistas, seus adoradores sentem piedade por seus netos ainda não nascidos, que não estão vendo o que acontece.
Mas o ídolo é ídolo apenas por um momento, humana eternidade, coisa de nada; e quando chega a hora do azar para o pé de ouro, a estrela conclui sua viagem do resplendor à escuridão. Esse corpo está com mais remendos que roupa de palhaço, o acrobata virou paralítico, o artista é uma besta:
— Com a ferradura, não!
Da Guia é da mesma estirpe de Da Vinci, um gênio renascentista – Imagem: Estadão Conteúdo
Em 1967, corri ao velho Parque Antártica para homenagear Júlio Botelho, o inesquecível Julinho. Ele despediu-se do futebol depois de uma vitória do Palmeiras sobre o Náutico por 1 a 0. A torcida clamou por sua permanência, mas Júlio Botelho preferiu tocar seus negócios na Penha, onde nasceu.
Também não poupei minhas mãos na refrega de aplausos a Ademir da Guia. O Divino me concedeu uma emoção inigualável, ao abrigar sua despedida no Allianz Parque, no dia 25 de outubro de 2014.
Julinho e Ademir eram Ídolos que resguardavam a modéstia nos escaninhos de suas sabedorias encantadas pelo Espírito Coletivo. Esse era o Espírito que inspirava seus passos e movimentos nos gramados.
Já escrevi nestas páginas concedidas generosamente por CartaCapital que os clubes de futebol têm uma origem, digamos, associativa. Em geral, trata-se de uma associação voluntária em torno de uma identidade, como é o caso de muitos clubes ingleses formados a partir das iniciativas das classes trabalhadoras. Isso tem vários significados, um deles é o da “identificação”. É uma forma de se identificar com o outro, um processo quase natural de buscar uma identidade afetiva.
A partir de meados dos anos 1980, os espaços do futebol passaram a sofrer o intenso assédio das finanças. As competições e os clubes começaram a ser cobiçados como mercadorias, negócios valiosos. O mercado do futebol foi globalizado.
O agente principal da globalização foi a universalização dos torneios e competições promovida pelas redes privadas de televisão. Essa maior integração não só envolveu a aproximação, ainda que não a igualdade, dos padrões salariais, dos valores das transferências, mas, sobretudo, atraiu grandes empresas para o “maior espetáculo da terra”.
Não é surpreendente que a paixão tenha sido apropriada e domesticada por um formidável aparato midiático-mercadológico. Os mercados não só se apropriam do tempo livre dos cidadãos, mas também produzem e monetizam os protagonistas do jogo da bola.
Os ídolos de antanho foram transfigurados nas celebridades de hoje. Neymar é a encarnação da alma financista e midiática. Uma celebridade. •
Publicado na edição n° 1343 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Rola a bola’