Em 8 de setembro de 2020, o jornal britânico The Guardian publicou um artigo escrito por uma Inteligência Artificial, a versão GPT–3 da OpenAI. A partir de um comando elaborado pelos editores do diário, escreveu o texto: “Um robô escreveu este artigo completo. Você ainda está amedrontado, humano?”
A solicitação feita ao GPT era para que fosse escrito um artigo que convencesse as pessoas de que as Inteligências Artificiais “vinham em paz”, ou seja, não ofereciam riscos à humanidade. Recupero esse acontecimento para refletir sobre o que é o objeto desta edição especial de CartaCapital: os desafios da humanidade.
Não se trata de temer a tecnologia, de adotar uma postura neoludista, negar seu uso ou impedir seu desenvolvimento. Mas ter clareza sobre o que queremos da Inteligência Artificial, ter uma visão crítica sobre seu uso e impactos, em vez de naturalizar sua presença como algo inevitável e em torno do qual não há nada a fazer.
Não existe neutralidade na tecnologia. Ela reproduz e está a serviço do projeto de sociedade de quem a domina
Lembro, também, de uma frase destacada da leitura do livro a Inteligência Coletiva, de Pierre Lévy. Tratando do advento da internet, ele afirma que “a forma e o conteúdo do ciberespaço ainda são especialmente indeterminados” e reconhecia que suas potencialidades positivas dependiam de “decisões técnicas, a adoção de normas e regulamentos”. Acredito que esta frase se adapta perfeitamente ao que vivemos hoje com relação à IA.
As tecnologias desenvolvidas ao longo da história da humanidade tiveram muitos objetivos distintos, mas um traço comum é exatamente o de auxiliar na execução de tarefas, produzir mais eficácia, aumentar a produtividade e reduzir os riscos em torno de atividades perigosas.
Contudo, nos marcos do capitalismo, o desenvolvimento científico e tecnológico tem outro sentido além do descrito acima. O intuito da introdução de novas técnicas passa a ser reduzir o tempo de produção, circulação e distribuição de mercadorias, para aumentar a mais-valia do capitalista e acelerar o ciclo de reprodução e acumulação do capital.
A questão central é que essa incorporação não vem acompanhada de políticas para proteção do emprego, para qualificação e requalificação dos trabalhadores e trabalhadoras, para que as pessoas extraiam os benefícios dessa tecnologia e não fiquem subsumidas por elas. A redução do tempo de produção, circulação e distribuição tampouco tem contribuído para o avanço de direitos trabalhistas, como a redução da jornada de trabalho, medida que poderia ampliar a massa de pessoas economicamente ativas e melhorar a qualidade de vida de todos.
Ao contrário, o avanço tecnológico, e particularmente a IA, tem aumentado o tempo de trabalho e a sua precarização. Daí a importância de campanhas como aquela que pede a proibição da jornada 6×1, com seis dias de trabalho e apenas um de descanso. Não podemos cristalizar a máxima de que vivemos para trabalhar. Devemos usar a tecnologia para termos mais tempo livre e usar o trabalho para vivermos melhor e mais dignamente.

“Viemos em paz”, anunciou o GPT–3, da OpenAI, em artigo publicado no jornal The Guardian há quatro anos – Imagem: Redes sociais
Infelizmente, a realidade é outra. Uma nova legião de trabalhadores, numa situação de subemprego, cresce invisivelmente no planeta. São os microtrabalhadores, que alimentam os sistemas de Inteligência Artificial gerando dados, fazendo a transcrição, correção e categorização de conteúdos que fornecem informações para os algoritmos identificarem preferências, modelos ou até mesmo tipos de discurso. Diferentemente do senso comum, há muito trabalho humano por detrás do desenvolvimento da IA.
Precisamos analisar as tecnologias a partir dos condicionantes políticos, econômicos, sociais e culturais em que elas são desenvolvidas. O que nos coloca diante da reflexão sobre a neutralidade ou não das tecnologias. Esse é um ponto nevrálgico para a produção de uma análise do estágio de desenvolvimento do capitalismo contemporâneo e para a construção das escolhas que a sociedade vai adotar em termos de regras e políticas para o uso, desenvolvimento e implementação da Inteligência Artificial.
Isso porque a construção retórica das empresas do Vale do Silício – nunca é tarde para registrar que o desenvolvimento da Inteligência Artificial hoje é concentrado nas big techs – baseia-se na narrativa de que estamos diante de tecnologias neutras, objetivas, que são desenvolvidas com a missão de melhorar a vida das pessoas. Um admirável mundo novo de facilidades.

O País precisa investir para não ficar dependente da tecnologia produzida por empresas estrangeiras, que têm seus próprios interesses – Imagem: Redes Sociais/Tesla
Mas não há neutralidade na tecnologia. Ela reproduz e está a serviço do projeto de sociedade de quem a domina. Por isso é preciso pensar sobre os limites da urgente e necessária agenda regulatória.
A regulação e outras medidas de governança contribuem para conter impactos negativos, devido à baixa explicabilidade dos sistemas, fruto tanto da falta de transparência sobre os parâmetros do seu desenvolvimento quanto da falta de auditabilidade dos bancos de dados usados para treinamento.