O mundo caminha para a multilateralidade, mas as organizações multilaterais estão em crise. Longe de um jogo de palavras, esta é a constatação essencial a partir da perda de efetividade do Conselho de Segurança das Nações Unidas, da falta de consequências práticas de decisões do G–20, de impasses surgidos em reuniões de organismos voltados para meio ambiente, comércio internacional e direitos humanos, em meio ao acirramento da disputa Ocidente–Oriente.

Ao mesmo tempo, há uma crescente disputa política em blocos de interesses específicos, como os BRICS, a Organização do Tratado do Atlântico Norte, a Liga Árabe e o G–7, entre outros. Se nos fixarmos apenas nos BRICS, aos quatro integrantes iniciais presentes em sua fundação em 2009 – Brasil, Rússia, Índia e China − somaram-se mais 19 até a cúpula de Kazan, em outubro último. A Otan contempla 32 países, liderados pelos EUA, a Liga Árabe 22 e o G–7 segue como o principal fórum dos países mais ricos do Ocidente, aos quais se agrega o Japão. Não se trata de comparar atividades do sistema ONU com outros arranjos internacionais, mas de perceber que o multilateralismo enfrenta tensões e insuficiências sérias no mundo pós-crise de 2008.

Duas das maiores expressões de turbulências enfrentadas por instituições multilaterais aconteceram no segundo semestre de 2023. A 78ª Assembleia-Geral da ONU destacou-se pela ausência dos líderes de quatro dos cinco integrantes permanentes do Conselho de Segurança. Xi Jinping, da China, Emmanuel Macron, da França, e Rishi Sunak, da Inglaterra, alegaram problemas de agenda. Vladimir Putin, por sua vez, tinha contra si um mandado de captura emitido pelo Tribunal Penal Internacional. Embora não integre a mais alta instância da organização, o indiano Narendra Modi tampouco deu as caras. À exceção de Joe Biden, todos enviaram representantes. Dois meses depois, na 18ª Cúpula do G–20, em Nova Délhi, faltaram Jinping, Putin e López Obrador, substituídos por auxiliares. Em 2024, novamente os presidentes da China e da Rússia não compareceram à Assembleia-Geral.

A ONU foi concebida para o exercício da unipolaridade norte-americana

A não participação de líderes em eventos relevantes não afeta o funcionamento da ONU, embora evidencie algum descrédito da instituição. Muito mais grave tem sido o reiterado descumprimento de resoluções aprovadas em suas instâncias. Vamos nos fixar num caso, o genocídio na Faixa de Gaza, a partir de 7 de outubro de 2023. Desde então, o conselho aprovou quatro resoluções exigindo pausa humanitária, trégua ou cessar-fogo. Tel-Aviv não acatou nenhuma e seus representantes acusaram a organização de “antissemita”, pregaram seu fechamento e declararam o secretário-geral António Guterres persona non grata em Israel.

A criação da Otan, em 1949, representa a primeira manifestação concreta das limitações da ONU para Washington. O império criava assim uma aliança que abertamente negava sua pregação multipolar em nome do combate a um inimigo comum. Seis anos depois, a URSS articularia o Pacto de Varsóvia. Violações às regras da Carta aconteceram seguidas vezes. A esse respeito, o historiador britânico Perry Anderson escreveu: “A ocupação israelense da Cisjordânia durou meio século sem que o Conselho de Segurança levantasse um dedo. Quando os EUA e seus aliados não conseguiram garantir uma resolução autorizando-os a atacar a Iugoslávia em 1998–99, valeram-se da Otan em vez disso, em violação patente da Carta da ONU. (…) Quatro anos depois, os Estados Unidos e a Grã-Bretanha lançaram seu ataque ao Iraque, contornando o Conselho de Segurança”.

As possibilidades do sistema ONU mostram-se defasadas nesse admirável mundo novo. Suas dezenas de órgãos, comissões, câmaras de controvérsias, instituições financeiras etc. ainda têm a mais importante instância de poder congelada num desenho de oito décadas atrás.

O presidente Lula tem enfatizado, em fóruns internacionais, a necessidade de repactuação da “governança global” por meio da revisão da Carta, considerando que apenas 51 dos atuais 193 integrantes das Nações Unidas participaram de sua fundação.

As tensões atuais evidenciam que a ordem mundial está batendo lata, como se diz pelas ruas, mas não há perspectiva de caminho a ser trilhado. Lamentavelmente, uma nova concertação planetária não virá apenas na base da boa conversa. •

E se os Estados Unidos abandonarem a Otan, como promete Trump? – Imagem: Arquivo/OTAN

Publicado na edição n° 1343 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2024.

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Last Update: 26/12/2024