Em 2023, a indústria global da pornografia foi avaliada em 287,8 bilhões de dólares. Estima-se um crescimento de 8,6% dos negócios mundiais do sexo até o fim de 2024. Em 2034, essa máquina mundial de cultura de gozo, “felicidade” programada, gestão do desejo, contradição passiva entre satisfação e angústia, paralisação em si mesmo, autogestão do orgasmo sem o outro, com a imagem subjetiva como outro, fora todos os seus mundos colaterais que, no caso, também são centrais, deve alcançar o valor de 706,2 bilhões de dólares. Essa expansão será acoplada e correlata a todo desenvolvimento e nova ocupação das redes mundiais pelas novas máquinas – e sua ordenação algorítmica, que sabemos bem ser política – de Inteligência Artificial, em um mundo de crise da inteligência humana que não seja esta.
Esses números ainda podem ser pequenos, se imaginarmos que em cada celular existente na terra, de cada cidadão desse tipo de cultura, estão abertas e disponíveis permanentemente, ao alcance de um ato psíquico qualquer, de um toque, sites, plataformas e redes inteiras dedicadas à pornografia, à pornografia conforme a indústria mundial.
De fato, quase não há fome de pornografia no mundo. Em seu número de inverno de 2016, a revista norte-americana de crítica cultural n+1 publicou um conto sobre a existência ao modo sujeito-espectador tecnopornográfico, um ensaio que, disfarçado de literatura, estudava a configuração de práticas para a vida desse real gozo disponível. Vida na imagem gozo, generalidade que se faz corpo particular, masturbação e tempo morto.
Consumir imagens, e ser consumido por elas, é ser sujeito.
Em 2023, o número de jogadores de jogos eletrônicos, os games baixados pela internet, pode ter alcançado 3,3 bilhões de espectadores em todo o mundo. Ou seja, 40% da população mundial, segundo um relatório da consultoria Newzoo. Essa festa global, individual e coletiva, de tempo dedicado a esses mundos simulados industriais, entre imaginativos, construtivos e fascistas, deve ter movimentado 188 bilhões de dólares no ano passado.
O mesmo mundo de satisfação mágica, aos toques de botão, e controle subjetivo pela imagem, está em jogo no universo final dos cassinos eletrônicos liberados no Brasil. Esse, não por acaso, se abate diretamente sobre todo o mundo dos mais pobres.
Neste ano, 216 bilhões de reais serão gastos em coisas como o jogo do tigrinho. O Ministério da Fazenda estimava, inicialmente, 150 bilhões. Causou escândalo moralista, diante do quadro dado, que 5 milhões de beneficiários do Bolsa Família, os mais pobres, tenham gastado 3 bilhões de reais em apostas nas redes. O que essa população, em seus lugares sociais fixados, pode esperar deste mundo, senão isso?
Por fim, para não esquecermos em que altura estamos, chegamos ao TikTok, a mais sofisticada das redes sociais baseadas em recepção de imagens: aquela em que todo espectador é também um produtor, um diretor, um ator, ou um coletivo realizador de filmes curtos, feitos com os próprios telefones, produtos rápidos e felizes que podem passar em qualquer parte.
“Eu gosto do TikTok, lá tem tudo”, me diz a faxineira.
Como sabemos ao menos desde Marx, quantidade material, e produtividade, é qualidade. Não precisamos recuperar a história arqueológica da pornografia no Ocidente, das elegias eróticas romanas, às loucuras demoníacas medievais, ao desrecalque libertino emancipatório do século da razão, ao impacto crescente e exponencial das imagens reprodutíveis, desde que elas surgiram no século XIX, com a fotografia, até as especulações finais de Foucault, para sabermos que algo de verdadeiramente imenso está acontecendo.
A base da globalização mundial dos mercados é o fundo tecno administrado do acesso universal à cultura, como fluxo contínuo de imagens, em que as consumir, e ser consumido por elas, é ser sujeito. Há um magma de fundo, da estase psíquica do tempo final da crise mundial do capital, no fluxo erótico constante de informação sem referente, gozo especular e excitação por minuto.
Picos de excitação na infinitude do mundo em fluxo de imagens não falam mais a nenhuma memória ou consciência, transferidas para essa forma técnica de viver. Talvez estejam gerando um inconsciente, não ótico, mas mundialmente associado e randômico, do qual não sabemos de nenhum modo qual será o resultado. Se é que há resultado. Apenas sabemos que a atuação do consumo mundial, extenuante e com os dias contados, passa por ele.
Por isso, a pornografia geral das redes me parece ser a matriz deste universo. A explicitude de uma imagem, objeto, excitação, que tem pouca variação em relação a todas as outras disponíveis bem ao seu lado – pois tudo é como Carlos Augusto Calil me contou sobre a definição da lei portuguesa de filmes pornográficos: “Aqueles em que os órgãos sexuais são os atores principais” – de forma que a coisa representada excitada, a repetição, o vazio e a mínima variação, ainda a ser encontrada, ou não, por um sujeito dessas condições de vida, engajando o corpo como descarga direta na imagem, quando não o prazer direto do dinheiro na, e da, imagem, é tudo o que se tem na vida.
•
*Psicanalista e ensaísta, professor no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Publicado na edição n° 1343 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Máquinas de prazer’