Definir o feminismo apenas como a luta pelos direitos das mulheres já não é suficiente. A intersecionalidade ocupa um papel central, pois os marcadores sociais da diferença – como gênero, sexualidade, raça e classe – não são variáveis isoladas. Eles se entrelaçam, intensificando as situações de exclusão. Ser mulher, no Brasil e no mundo, é desafiador para todas, devido aos privilégios sustentados por um patriarcado secular e opressor. Contudo, para mulheres pobres, negras e/ou LGBT, as barreiras são ainda mais impenetráveis. Nesta edição especial, CartaCapital ouviu quatro feministas brasileiras de grande destaque nesse debate: Djamila Ribeiro, Débora Diniz, Maíra Liguori e Marcia Tiburi. Além de discutirem a intersecionalidade, as pesquisadoras denunciam a violência de gênero, defendem a ampliação dos direitos reprodutivos, exigem maior representatividade feminina nos espaços de poder e alertam para a necessidade de abordar a economia do cuidado.
RAÇA, CLASSE, SEXUALIDADE E GÊNERO SE ENTRELAÇAM
Por Djamila Ribeiro*
O fortalecimento de discursos e políticas que visam controlar e limitar os direitos das mulheres não é algo novo na história. É uma estratégia recorrente em momentos de crise, nos quais a conquista de direitos sociais e a busca por igualdade pelas mulheres são vistas como ameaças às estruturas de poder estabelecidas. Esse fenômeno é histórico e recorrente, mas os feminismos – e aqui destaco o feminismo intersecional – têm mostrado uma resistência poderosa, mesmo diante de contextos de extrema adversidade.
Hoje, mais que nunca, precisamos reconhecer que o feminismo é um movimento dinâmico e diverso, em constante adaptação para responder às novas investidas reacionárias. Essa realidade nos convoca a desenvolver teorias e práticas que incorporem as complexidades do nosso tempo, onde raça, classe e gênero se entrelaçam e exigem respostas mais amplas e integradas. Inspirada nas epistemologias do Sul, vejo uma necessidade urgente de fortalecer práticas que construam redes de apoio e estruturas de segurança para todas as mulheres, em especial para as mulheres negras, indígenas e aquelas marginalizadas pela pobreza e pela exclusão social.
Nos meus trabalhos mais recentes, noto que a troca com feministas indianas da casta Dalit, com feministas africanas, latino-americanas e caribenhas tem sido enriquecedora. Essas vozes trazem perspectivas cruciais, revelando como o feminismo, nesses contextos, é um chamado à resistência que desafia diretamente sistemas de dominação que se perpetuam por meio de raça, sexo, gênero e classe.
Ao traçar diálogos com esses movimentos, compreendemos que o feminismo intersecional transcende fronteiras, oferecendo ferramentas para enfrentar as complexas dinâmicas de opressão que, de diferentes maneiras, limitam a vida das mulheres. O feminismo, ao longo da história, sempre soube resistir e criar espaços de poder e transformação. Neste momento, mais uma vez, ele carrega a tarefa fundamental de propor um novo mundo, inclusivo e radicalmente comprometido com a justiça e a dignidade. É um chamado para irmos além da resistência, construindo alternativas que materializem o que imaginamos ser possível – um mundo onde todas as mulheres possam viver com liberdade, respeito e autonomia.
DIREITOS REPRODUTIVOS E COMBATE À VIOLÊNCIA
Por Débora Diniz*
A pauta do feminismo deve sempre perceber a intersecionalidade, reconhecer a existência de questões que vão atravessar as mulheres nas suas diferenças e nas suas desigualdades. A partir desse ponto, listaria três temas prioritários. O primeiro deles é a garantia do direito à vida e dos direitos reprodutivos, o que passa pela descriminalização do aborto e pelo combate à violência de gênero. As duas coisas estão muito próximas: cuidar da própria vida e manter-se viva. O segundo ponto é ocuparmos os espaços de poder. Precisamos de mulheres na política, uma representatividade que também expresse a diversidade das mulheres. A terceira questão: não há possibilidade de uma luta feminista sem uma centralidade da discussão sobre o cuidado.
Nós começamos com a discussão sobre direitos reprodutivos, que é sobre quando, como e com quem queremos ter filhos, como, quando e com quem viver uma relação afetiva, familiar, conjugal. Isso implica proteções contra violência e o direito ao aborto. A segunda é sobre nós termos representatividade das necessidades da vida das mulheres na política. E a terceira é todo o circuito do cuidado. A vida das mulheres, nas suas intersecionalidades, da juventude, das mulheres negras, ela é tocada por cuidar dos filhos, pela ausência de créditos, por cuidar de pessoas dependentes, e isso consome o tempo dessas mulheres. São temas urgentes que estão no centro do debate feminista, seja no presente, seja no futuro.