A deputada federal Erika Hilton, do PSOL paulista, é uma das mais atuantes parlamentares da Câmara, o que a torna alvo frequente da extrema-direita. Mulher trans, negra e defensora dos direitos humanos, ela sustenta que o Brasil só se tornará uma democracia plena se contemplar a diversidade e rebate a narrativa, ecoada inclusive por setores da esquerda, de que as questões identitárias dividem a sociedade e a classe trabalhadora. “No fundo, estamos falando de como o capitalismo utiliza as opressões para explorar e dividir ainda mais os trabalhadores”, afirma, em entrevista a CartaCapital. “Negar isso é perpetuar a exclusão de milhões de pessoas.”

CartaCapital: As pautas identitárias dividem a sociedade?
Erika Hilton: Não existe divisão alguma, e sim uma luta para que todos e todas sejam vistos e tratados com dignidade. E isso passa por reconhecer que diferentes grupos sociais enfrentam desigualdades específicas, que têm raízes históricas, culturais, políticas e econômicas. Quando falamos de identidades, estamos falando de pessoas reais, de vidas que foram colocadas à margem da sociedade por séculos. Estamos falando de mulheres negras, da população LGBTQIA+, de povos indígenas, de pessoas com deficiência, de quem sempre esteve invisibilizado ou reduzido a estereótipos, mas que agora levanta a voz, disputa espaços de poder, cobra políticas públicas e, acima de tudo, exige respeito. A democracia não será completa enquanto não contemplar a diversidade.

CC: Até mesmo setores da esquerda têm criticado as pautas identitárias, alegando que a luta de classes foi deixada de lado, ficou em segundo plano.
EH: Essa ideia de que as pautas identitárias competem com a luta de classes só beneficia a direita e confunde a esquerda. Sabe por quê? A classe trabalhadora não é uma massa homogênea. As mulheres negras recebem os piores salários, os jovens LGBTQIA+ enfrentam altíssimas taxas de desemprego. Como falar de luta de classes sem enxergar essas especificidades? No fundo, estamos falando de como o capitalismo utiliza as opressões para explorar e dividir ainda mais os trabalhadores. Negar isso é perpetuar a exclusão de milhões de pessoas. O que precisamos é unificar as lutas. Precisamos reconhecer que as opressões de gênero, raça, sexualidade e outras não são questões periféricas, elas estruturam a exploração. As “pautas identitárias” não enfraquecem a luta de classes. Ao contrário, fortalecem-na, pois ampliam a compreensão sobre como as desigualdades se manifestam.

CC: A senhora é autora de uma PEC para reduzir a jornada semanal e acabar com a escala 6×1, que impõe seis dias de trabalho e um de descanso. Ao propor um projeto com esse caráter universal, mulheres negras e jovens LGBTQIA+ também são favorecidos, não?
EH: A pauta da classe trabalhadora, por si só, já engloba as demandas das mulheres, dos negros e dos LGBTQIA+, mas a questão é: ela tem sido discutida de maneira a dar visibilidade a essas especificidades? Muitas vezes não, infelizmente. A mulher negra, que ocupa a base da pirâmide social e trabalha em condições precárias, enfrenta não apenas o peso do racismo e do machismo, mas também a exploração de classe, o que torna a sua experiência muito mais difícil. Da mesma forma, a população trans é praticamente excluída do mercado formal de trabalho, enfrentando não só a discriminação no emprego, mas também a violência cotidiana, o preconceito e o apagamento de sua identidade.

CC: Como garantir que as políticas públicas atendam a essas questões específicas de forma eficaz?
EH: A PEC da jornada 6×1 é um exemplo de como uma pauta universal pode dialogar com essas especificidades. Garantir uma vida além do trabalho beneficia todos os trabalhadores, mas tem um impacto ainda maior para aqueles que enfrentam jornadas exaustivas e condições desumanas. As pautas identitárias e da classe trabalhadora se cruzam, e é fundamental tratá-las de forma intersecional, para que ninguém fique para trás. As opressões não atuam isoladamente, elas se sobrepõem.

“As opressões de gênero, raça e sexualidade não são questões periféricas, elas estruturam a exploração”

CC: Como dialogar sobre esses temas com a população? A linguagem neutra, por exemplo, tem sido amplamente criticada pela direita e é vista por muitos como uma afronta à língua portuguesa. O cuidado com as diferenças é frequentemente chamado de “mimimi”. Como, então, conduzir esse debate?
EH: Esse é um dos maiores desafios, pois a direita tem adotado uma estratégia de simplificação, mentiras e desinformação para semear o pânico moral. Transformam questões sérias, como o direito ao aborto, o racismo e os direitos LGBTQIA+, em “ideologias” ou “ataques à família”. E isso ressoa, pois essas narrativas alimentam o medo das pessoas, muitas vezes por falta de conhecimento. Nosso papel é humanizar o debate, mostrando que, ao defender o direito ao aborto, por exemplo, estamos falando da autonomia das mulheres, de preservar a vida das mães. Devemos sair das bolhas, dialogar com a sociedade de maneira clara e acessível.

CC: Qual é o potencial eleitoral daqueles que defendem as pautas identitárias?
EH: A sociedade está exigindo maior representatividade na política, pedindo que os espaços de poder sejam ocupados por pessoas que vivenciam os problemas na realidade. Minha trajetória é um exemplo disso. E o potencial ainda é enorme, estamos apenas no começo. O grande desafio, agora, é fortalecer essa representatividade, garantindo que ela seja qualificada, que esses espaços sejam ocupados não apenas como vitrine, mas como áreas de transformação. Para isso, é essencial formar novas lideranças, criar redes de apoio e fortalecer os movimentos de base.

CC: Como é enfrentar esse desafio no atual Congresso, em uma legislatura que é considerada a mais reacionária desde o fim da ditadura?
EH: Estar na Câmara dos Deputados é uma luta diária. Enfrento ataques constantes, não apenas por ser mulher negra e trans, mas por ousar defender aqueles que a sociedade e a classe política insistem em invisibilizar. Ao mesmo tempo, é um espaço de resistência e transformação. Cada projeto que apresento, cada discurso que faço, é um ato político de reafirmação da nossa existência, dos nossos direitos e da nossa dignidade.

CC: Olhando para o futuro, a senhora acredita que o Brasil pode alcançar um cenário em que as reivindicações das minorias sociais sejam contempladas?
EH: Este é o meu sonho. Um Brasil onde ninguém precise lutar para ser reconhecido, onde as diferenças sejam respeitadas e celebradas. Até lá, a luta continua, porque o futuro com que eu sonho não se construirá sozinho. Ele é fruto do trabalho, da mobilização e da coragem de todas as pessoas que acreditam em um país mais justo

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Last Update: 26/12/2024