Por um novo caminho
A despeito das reservas que se possa ter sobre o “arcabouço do Haddad”, fato político mais importante do atual governo do Presidente Lula, é o referido arcabouço que, tecido por inteiro por Fernando Haddad e seu grupo técnico de alto nível, refez a política doméstica como política nacional. O arcabouço percorreu até agora um estreito desfiladeiro, que permitiu a democracia e o Estado de direito transitarem de uma quase anomia – proporcionada por um golpe de Estado tentado – para um espaço de repouso relativo, dentro do qual estacionamos para ajudar o país a caminhar para uma ideia de nação, a ser preparada inclusive para dar exemplos na transição climática.
Explico-me: ao negar ao Estado a possibilidade de uma Agência Federal fora do estreito contencioso político local, ficou bloqueada a possibilidade de preparação de um projeto para a (re)construção eco-ambiental do RS, baseada em parâmetros novos de integração nacional. Estes poderiam partir de alguns investimentos idealizados para fundar um corredor novo-tipo, de sustentabilidade energética e produtiva. Ele poderia começar com a reconstrução programada do Muro, projetando-se com investimentos para produção de energia limpa em direção ao Taim, que depois de abarcar o Vale do Taquari, se direcionasse para o Pantanal mato-grossense, até chegar à Amazônia.
Não sei se esta impressão é apenas própria de um quadro ex-dirigente do PT num estado que já há muitos anos exerce quase nenhuma influência política nos destinos da Federação. O próprio PT gaúcho tem escassa influência nas decisões do Governo Federal para este Rio Grande do Sul no qual o bolsonarismo cooptou a maior parte dos empresários e uma boa parte das classes médias. Ou talvez simplesmente seja a opinião de um cidadão que governou o estado e Porto Alegre, que está fortemente pautado pela tragédia climática que se abateu sobre nós.
Sobre ela o governo federal – prestimoso e solidário – ofereceu os devidos acompanhamentos humanísticos e reparatórios, mais bilhões de dólares nas mãos do governo do estado sem, no entanto, mostrar a capacidade de transformar a desgraça num projeto épico de construção de uma nova ideia de nação. Fui testemunha de decisões desta grandeza, que o Presidente tomou, por exemplo, em relação à transposição das águas do rio São Francisco.
A partir da análise explicitada por Eric Hobsbawm, em Como cambiar el mundo, é possível traçar um paralelo entre a sociedade brasileira atual, no que refere aos enfrentamentos da “questão democrática”, comparando-a com a Itália depois de 1917, no que refere às condições para enfrentar a “questão da revolução social”, que grassava em toda a Europa do primeiro pós Guerra.
Busco este paralelo em função do que chamo de estreitas margens de manobra que tem qualquer governo popular no mundo tutelado pelos movimentos do capital financeiro, para fazer ceder de forma sustentável os níveis de desigualdade, promover a cultura, a alimentação e a educação do povo, num modelo democrático e social, fundado num modo de vida conscientemente orientado para o bem comum. Não saber usar as estreitas margens para atendimento das demandas dos pobres e excluídos, dentro do sistema do capital, aqui já nos levaram a Jair Bolsonaro; na Itália, a Benito Mussolini.
Vozes fraternas e autorizadas da esquerda poderão alegar que só uma revolução promoverá esta nova era, embora tudo que ocorre hoje venha no sentido oposto ao que foi imaginado no século passado como uma revolução. Aliás, o governo Lula é um governo moderado, não um governo que se propôs a abrir uma nova etapa revolucionária no continente. Graças a isso, por certo, ele pôde fazer muito, mesmo com um partido de apoio que não se renovou e com a falta de uma base social ativa para defendê-lo nas ruas. Enfrenta ainda, as ameaças de uma maioria parlamentar, como conjunto frágil nos seus deveres para com o país e forte no seu fisiologismo oligárquico regionalista.
A destruição da naturalidade, como parceira da evolução social, agrega mais uma dificuldade brutal aos melhores propósitos de mudança do país, já que a desarticulação entre o “bem” e o “comum” na atual sociedade de classes – destruiu o sentido do que os dois termos significavam juntos, já no começo do século XXI. A reforma trabalhista sem resistência operária, a prisão de Lula sem rebelião popular, a equação criminosa das chantagens da maioria Congresso Nacional e o impedimento golpista da presidenta Dilma Rousseff, falam muito das distopias no nosso liberalismo político amortecido.
O terceiro governo Lula é o mais difícil da série de governos iniciados no ano de 2002, bem mais difícil do que foi o segundo governo Dilma até o seu incrível impedimento “dentro da ordem”, em agosto de 2016; e seguramente menos difícil do que será um possível governo de “centro-esquerda”, caso isso venha a ocorrer a partir de 2026. Entendo, aliás, que este deve ser o ponto de partida para uma reflexão estratégica que possa unir uma nova Frente política e social, para avançarmos numa melhor direção a partir de 2026.
A criminalidade em rede, organizada globalmente para sequestrar a livre formação da opinião, não vai ceder nem parar, pois vai estar cada vez mais combinada com as novas inteligências informacionais e com os fluxos de dinheiro, piratas ou legais, circulando sem controle. A grande maioria do povo cansada dos rituais da democracia e da burocracia, indica que teremos tempos ainda mais duros para a reversão desse cansaço, agora geometricamente aumentado pelo trágico do clima, que só poderá ser vencido pelo épico da política.
A extrema separação entre representados e representantes, fruto de uma democracia que não se renovou, bem como a emergência espontânea ou provocada de movimentos políticos neofascistas e extremistas de direita em todo o mundo ocidental, mais além da normalização do genocídio em Gaza, somam-se à impotência da esquerda em geral, para se renovar como geração e discursivamente. Está erguida já agora uma espessa neblina política para visualizarmos “o que fazer” no amanhã.
Penso que o Presidente está certo em fazer uma profunda reforma ministerial, mas se não for profunda é melhor deixar como está. Não é mais tempo de treinamento de quadros, mas sim de obter resultados concretos de governança nas pastas-chaves, para forjar também uma nova estrutura ministerial, reforçando as lutas identitárias de forma integrada aos direitos fundamentais, sobretudo por uma agilização para o cumprimento das missões de governo.
Uma pergunta que se impõe, por exemplo, é por que não dotar o Ministério da Justiça de mais força na defesa de Direitos, colocando sob sua estrutura secretarias fortes dos direitos humanos, mulheres, igualdade racial, coordenadas diretamente pelo Ministro da Justiça? Por que não separar a Justiça da Segurança Pública, construindo um forte Ministério da Segurança, para enfrentar o crime organizado global e os crimes “domésticos”, através de projetos nacionais e internacionais, que integrem o combate à criminalidade, partindo dos fluxos informacionais, comunicativos e financeiros, que abrangem a totalidade do planeta? É para defesa imediata da democracia concreta!
Foi Sigmund Freud quem disse que o “sonho é o guardião do sono, e não seu perturbador.”