O terror, ainda
por Luís Carlos
“A guerra ainda existirá amanhã”.
Maria Sarrault
Não precisaríamos escrever aqui, no apagar das luzes de 2024, que o poder deslumbra, encanta e entorpece; ainda que nos bastassem os exemplos da História, o cotidiano continua nos alertando nas menores e nas maiores ocasiões, seja o governo de um escritório, seja a administração de um país.
Tanto o poder numa interpretação filosófica, significando potência, como numa leitura prática, no sentido de condição e possibilidade, como por exemplo o prosaico poder de declarar guerra, invadir um território estrangeiro e matar.
Também não é surpresa, a essa altura, que tal poder real seja objeto de admiração e celebração, seja por questões ideológicas, étnicas ou religiosas.
E ainda por questões psicanalíticas, mas deixaremos essas para outra conversa.
Às pessoas que sentem algum encantamento na alma e no coração quando vêem um desfile militar ou celebram o início de uma guerra, caberia ver ou rever – mas essencialmente tentar entender – um filme como Apocalypse Now, que completa 45 anos.
Vale lembrar, aliás, que o filme de Francis Ford Coppola é inspirado em outra obra de arte essencial para captar a desumanidade do ser humano, O Coração das Trevas, livro publicado pelo britânico de origem polonesa Joseph Conrad 125 anos atrás.
A abertura do filme dá o tom, contrastando a lenta, sombria e fria The End, da banda The Doors, com o calor brilhante e sádico do napalm queimando tudo que vê pela frente – tenha vida ou não.
Napalm, aliás, cujas propriedades vão receber, logo adiante, uma menção especial do tenente-coronel William Kilgore, vivido por Robert Duvall.
Segue-se um terrível encadeamento de sons, imagens e atos, opondo a exuberância da natureza à pequenez da humanidade e, especialmente, de sua histriônica porção fardada.
O capitão Benjamin Willard, vivido por Martin Sheen, uma espécie de consciência atormentada do mundo – ou dos Estados Unidos, claro – é o homem com uma missão: relembra seu passado, projeta seu futuro, questiona sua existência e sua tarefa. Tem traços comportamentais dos primatas mostrados no início de outro filme genial, 2001, de Stanley Kubrick (1968). Chega a pensar; quase se permite ser um René Descartes dos tempos modernos. Mas isso não basta; há um dever a cumprir.
Quem ou o que ele procura? O coronel Walter Kurtz, personificado por Marlon Brando: o desajustado, o renegado, o a-normal, a ameaça desconhecida de poder incalculável, o homem cujos níveis de humanidade supostamente são tão baixos que o tornam inadmissível até para as Forças Armadas dos Estados Unidos durante a Guerra do Vietnã.
O sucesso da missão depende do encontro dos dois, do enfrentamento da ordem e da desordem.
Apenas um filme. Um enorme filme. Coppola o realizou etéreo, onírico, quente e úmido – um sonho que descamba para um pesadelo, mesmo quando acaba. Mas é apenas um filme. Coisas reais e piores acontecem no planeta Terra todos os dias.
Seja no continente africano, seja no sudeste asiático, seja hoje no Oriente Médio, a civilização ocidental não soube trazer respostas para velhos problemas; ao invés, despertou e incentivou antigos monstros adormecidos e fabricou outros novos, eventualmente pagando parcelas da dívida por meio de ataques que, obviamente, desencadeiam respostas ainda maiores, alimentando o moto perpétuo da destruição da humanidade.
Luís Carlos é jornalista desde 1995 com experiência em rádio, TV, jornal, agência de notícias, digital e podcast. Tem graduação em Jornalismo e História, com especializações em Política Contemporânea, Ética na Administração Pública, Introdução ao Orçamento Público, LAI, Marketing Digital, Relações Internacionais e História da Arte.
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